24/01/2022

REGISTOS CIVIS - 34 a 36



Orlando – 34



    José Licínio Gomez Orlando, dizíamos. Rapaz mais facilmente reconhecível por as carreiras profissionais que largou do que por alguma – que nenhuma é – em que haja singrado.
    Dito popular de sua favorita escolha: “Já apanhei muita porca mas nenhuma delas tinha rosca.”
    Certo e demonstrado é ele, como toda a gente, respirar enquanto vivo – como disse um outro: “De outro modo, nada feito.”
    Muita minúcia se pode dizer de Zé Orlando, mas nenhuma nem grande coisa, nem idem espingarda. A vida corre sem parecer levantar do chão as patas.
    O futebol é para ele uma merda, excepto quando o Benfica não apenas ganha como ainda por cima joga bem – esta verdade adquire logo espectro de certificação científica.
    Há muito tempo que não desgaiola gargalhadas. Ri muito menos do que já riu - mas sorri mais, sarcasticamente embora. Ele mesmo desdá importância a tal evidência.
    Falou recentemente com um rapaz chamado Adílio Feliciano Trindade Gonçalves. Com ele sim, gargalhou algumas tiradas altissonantes. Gonçalves é abastado, costuma empresta’da’r notas azuis a Orlando. Divertem-se ao gás todo com anedotas & dichotes sobre tudo quanto seja, nestes dias fracos, politicamente-incorrecto: paneleiros, pretos, judeus, chinocas, amaricado-amaricanos, lésbi’lambéconas – e até crianças cèguinhas de nascença.



Fala – 35




A fala do envelhecido não costuma usar interlocutor.
É no geral feita de consabidas ciências sem préstimo.
Ou: a experiências sem uso na manutenção militar,
lá onde os créditos distinguem praças de conquistas.

Na mesma sala em que António Cecílio Silvestre
te cumprimentou de aberta mãos sem armas,
aí escreve(s), emudecida a sala, António ido.
A sala fica, tu não, falo por mim, a sala fica,

Uma senhora que traía o marido contactou-me,
queria explicações de Português para o filho,
o filho estava no Oitavo & ela nas penúltimas,
acabei recebendo trezentos & 50 à hora – mas só por ela.

A fala do rejuvenescido vem toda da lotaria-gorda.
(interrompido, sem retoma)



Adriano – 36



    Adriano Capela d’Armas Sant’Iago nasceu, como eu nasci, no ano n.º 1964 d.C. Tirante tal, amailo o facto de ambos seguirmos respirando, nenhuma outra simetria apresentam de si as nossas, uma de cada um, existências. Esta peculiar coisa nos diferençava – e continua diferençando: a sexualidade. A dele atormentava-o, atormenta-o & há-de atormentá-lo até o dia em que inaugure a sua tabuleta de duas datas. A adolescência ferrou-o de um ardor cúpido intransigente. Pôs-se cobiçando os corpos alheios com uma atenção fixa de leopardo.
    Como & quando o conheci? Isso passou-se em Coimbra, quando não resultava difícil encontrar alguma rapaziada palerma. Fumava esta, mormente na esplanada do Café Santa Cruz, à decadentista francês, cafeinando-se & aquamineralando-se a preceito. Foi no ano cujo 1.º de Janeiro não teve outra prenda de Ano Novo que não fosse o ingente terramoto nos Açores: 1980. Fomos um ao outro introduzidos por Telmo Artur Portalegre Mariel, manso folião que quatro putas macérrimas da Rua Direita sustentavam. Simpatizámo-nos de imediata reciprocidade. Desde então, temo-nos correspondido com afável & amável irregularidade. Não o vejo há bons (afinal maus) onze anos. Eu continuo copofonista, a ponto de já por mais de trinta vezes terem tido de colher-me do chão à colherada. Ele, não. Ele é sóbrio em tudo – menos naquilo que V. disse, a volúpia implacável que o titila todo, a tremenda luxúria que o caustica até em sonhos.
    Mais por alívio divã-psiquiátrico do que por fanfarronice varão-máscula, sempre me contou até ao mais ínfimo & mais íntimo detalhe as suas venturas, aventuras & desventuras erotómanas. Porque é de um ninfogajo que falamos, senhores (& senhoras). Sim, tem-me contado tudo. Episódios até em que houve mosquitos-por-cordas, nus ambos, ele & sua companhia deitada. A verdade é Adriano nem sempre, como sói dizer-se, joga-com-o-baralho-todo. (NB: escrevi baralho, que confusões não surtam.) Ele põe-se bastas vezes a jeito de tais enredos de tapeçaria arábica, enfim.
    Em 2011, se não erro, condoeu-me verificar em seu/dele rosto um ricto amarelo-torrado de labiação color-leite-creme. Vinha ele de furtiva investida ali ao camoniano-Canto-IX que em Coimbra se chama Mata de Vale de Canas. Rasgava-o isto: vinha, post-coitum, apaixonado. Toda a gente sabe que, tal, é o pior que pode acontecer a quem só apareceu para foder um bocadito & alguém. Também isso porém – como tudo na vid’afinal – lhe passou.




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Canzoada Assaltante