Rosalía de Castro
(1837-1885)
Pela tarde - 17
Quanto
a um de que ainda não falámos até agora, pode dizer-se, para já, que a casa lhe
parece irremediavelmente mais do que meio vazia. Escusado atravancá-la de
móveis, atafulhá-la de imagens, ou de quinquilharias, ou de máquinas – ou até
mesmo de livros. É o que lhe parece.
Lhe
a ele: um de que ainda falaremos.
Ei-lo,
anónimo por enquanto, em sua tarde.
Sempre
rompeu algum sol na quarta-feira, 12 do I.
Há
tarefa a cumprir até às 17h00m.
Muitas
arestas por adoçar, até lá.
Um
pouco de esforço, alguma dedicação.
É
uma tarefa de carácter prático.
Ele
faz por desemaranhar-se de pensamentos colaterais.
Enquanto
tudo isto lhe é constante na tarde sua contemporânea, um rapaz recebe a má-nova
de certo inesperadíssimo óbito; um casal viaja de autocarro em meio a uma
tempestade de areia, lá para o Norte de África; uma rapariga de camisola
cor-de-caramelo penteia-se longamente à janela; no azul disponível, as aves
procedem à pontuação volante do texto do ar.
O
Sol titubeou, já não exerce sua magistratura, já as primícias da neonoite se
instauram em as instâncias totais da realidade. O corrente Janeiro tem feito
algum jus (mas, hélas!, não muito) à dimensão invernal. Sabe bem, ao
deitar, ocultar o prometido cadáver em flanelas propícias, deixar tão-só de
fora o nariz, imaginar que se é recolhido à cabana sita na imensidão, como um
firmamento caído, da tundra.
Ele
desembaraça-se já, ou finalmente, da tarefa vesperal, julgo que a razoável
contento. Faz & serve-se chá, que guarnece de bolachas-de-arroz com compota
de morango. Pode ser que nem assim tão meio-vã ou desamparada seja esta casa.
Parte da estrutura é de madeira sólida, robusta, bem escorada. A lareira, naturalmente,
foi aberta na parte de pedra da habitação. Ele empilhou lenha de ambos os lados
da bocarra. É recurso funcional. Por poupança, só lhe dá ignição quando a noite
já avança como derradeira promessa cumprida.
Não
sairá hoje de casa, preferindo investir em horas íntimas o capital do serão.
Televisor desligado, um volume francês dos anos 50/XX, um conhaque morno, talvez
uma pastilha de serenal. Muito mundo se agita para lá das raias desta casa.
Fora, o jardineiro vigora em o tempo secreto das existências vegetais. O residente
aquieta-se na poltrona que enfrenta o lar, onde a lenha preparada espera o
fósforo, o sonho do lume, o holocausto do frio que já se sente.
Disponíveis
sempre, convidadas ou não, lembranças entrelaçam-se como pedúnculos de cerejas.
Coisas mal remendadas, aparatosas inconsequências, fontes de direito, drenagem
de pântanos, Natália Maria Antunes Pereira, olha quem. Ele sorri à revelação, como
em tabuleiro de líquido fotográfico, desse rosto subindo do fundo das águas mentais.
Bonito rosto, róseas feições, irremediáveis léguas/décadas, mal nenhum.
Este
que sorri é Túlio Serafim d’Anes Galo, ei-lo nomeado.
Túlio - 18
Ainda
aparece algumas vezes no Café d’Alice, mas não tantas quantas, nos pretéritos
anos 80/XX, soía. Separou-se em maus-termos daquela alemã-amor-de-praia.
Passou, ao que consta, mais do que um mau bocado. O novo emprego foi
providencial – além de se ter mudado para o Tovim, esse Tovim de onde Mestre
Nemésio saía a cavalo até ao Dianteiro: upa-upa que é de garupa. Talvez apareça
na Alice na próxima sexta-feira, 14 de Janeiro. Até lá, porém, há que serem
escritas mais linhas, costuradas mais algumas páginas, mais assentos averbados,
mais assentados averbamentos.
Tem
mantido relações epistolares com pessoas de largo espectro de laborações
solitárias:
um
engenheiro de pontes vivendo em Ílhavo;
um
topógrafo de Santiago do Cacém;
uma
manicura da Alameda lisbonense;
um
professor de geometria nado no Barreiro;
um
poeta de Sines que dorme calçado;
uma
duquesa de extraordinária longevidade;
um
filho de guarda-rios chamado Cândido;
um
editor de patranhas de auto-ajuda;
e
um jogador do Esperança de Lagos na época 1975/76.
Quando
sai a passear pela Cidade, desce a Elísio de Moura, acampa cerca de hora e meia
no Calhabé, em jornada boa sobe a dos Combatentes, inspira fundos haustos de ar
verde no Botânico, bebe uma cerveja entre a estudantada na Praça, sobe a Celas,
sobe aos Olivais, sobe ao Tovim. Ainda palmilha boas milhas. Mas não sai muito,
já não sai muito. Parece que todos acabam por se recolher, primeiro, e por
acabar-acabar, depois – quando até os depois se acabam.
Carta do poeta de Sines a Túlio Galo - 19
Senhor:
Tende
piedade nenhuma de mim.
Se
neste artificioso bosquete de betão resido, mea culpa só, tão-só,
somente & apenas: tenho por norma experimentada que em qualquer pardieiro a
minha solitude seria da mesma irrelevância.
Olhe
o senhor que sou nada mal remunerado. Tenho sinecura, vulgo tacho – e
por mecenas da minha poesia-part-time certa matrona de pastelaria com
quem fornico às terças-feiras, salvo se vésperas de feriado.
A
si, sou-lhe em plenitude grato por ler-me as estrofes. Não as julgo publicáveis
senão em edição-de-autor – mas nem eu as considero de tal mérito, ou necessidade,
ou sacrifício, ou desperdício. Sigo compondo-as, no entanto.
Matar-me, não me mato, pois que a vida se encarregará de tal cometimento.
Viveu
aqui em Sines um poeta-Poeta a sério: Al Berto. Sabe o senhor Túlio que ele
nasceu aí-Coimbra? Não é todavia um poeta conimbricense/coimbrinha: é
poeta-Poeta, não é um Torga nem um Alegre. Desculpe-me o estar com estas coisas a
queimar-lhe tempo, mas de verdade não tenho com quem falar. (E não, não conta o
que gemo às terças por uma nota de cem & uma caixa de empadas, que não vou
em doces.)
Se
algum dia, por alguma estranha razão, por aqui passar, queira ser senhor da
supina cortesia de me noticiá-lo. Almoçaríamos a meu convite, claro. Ou
jantaríamos. (Nunca acontecerá, bem o pressinto.)
Conte-me
mais, conte-me quase tudo.
Jesualdo
Rita de Menezes Pargo
Averbamentos - 20
Faltam
dezassete dias para as eleições legislativas.
Tem
havido campeonato de debates na televisão.
Fora
deste circo, vivem no País as forças-vivas,
às
quais corresponde significativa população.
A
rotunda matrona, ressuscitada dos arquivos,
perora
a mote de um autor de culto dito maldito.
Nem
tal autor nem tal matrona são já vivos.
Morrer
nunca é só, Zé Gomes Ferreira, por um bocadito.
Gringos
travestidos, tenças corruptas, editores sem porvir,
pançudos
assessores-culturais em, bien sûr, Paris.
Bobos
& bobós da corte & quantas putas a parir
bastardos
que vós, sérias matronas, também paris.
Achego-me
à vidraça elevada que ali esclarece a marquise,
miro
sem ciência o velho novo mundo além plasmado,
faço
café, torro pão, nada me falta de que precise,
deve
ser pêta Os Lusíadas salvos p’lo Zarolho a nado.
Em
esplanada a que não voltarei, li outrora Rosalía.
Foi
em cidade que mesmo à torreira me soube a fria.
Decapito
um a um tais anos maus, desperdiçados.
Enfim
todavia: pois que irremediáveis, estão remediados.
Fátima
do Céu Pacheco Moniz, estrela-de-cartão de Carcavelos,
divorcia-se
de Luiz Baganha de Gonelha Vasconcelos.
Casa-se,
ao que por ’í dizem, na véspera das eleições
com
Mário Alberto Corrêa Bordalo, o da central de camiões.
Filmados,
ressuscitados, os mortos literários
voltam
para assombrar os instantes ilegíveis
do
analfabeto presente, pasto de sicários,
vários
dos quais, aliás, no dia 30, elegíveis.
Sobre
fundo par(a)do, aind’assim algumas tintas,
amarelazulilássépiarroxocre
em remexida paleta.
Barcos
que trilham terra, ínsuas, quintas.
Cristos
caminhando sobre água – e sem muleta.
É
por vezes precário, isto de ser-se coevo do transitório.
Como
dormir em cama com rodas, por assim dizer.
Há
que merecer merecimento, não se nasce meritório.
Nasce-se
porque se nasce, às vezes sem se o merecer.
Nem
todos os mortos são literários, convenhamo-lo.
Neste
aspecto, prolongam afinal muitos vivos de agora.
Quanto
ao tempo ainda por viver – vivamo-lo,
que
cedo se faz tarde, tarde de mais, vai-se tud’embora.
Em
outeir’alto a capelinha à luz alveja,
no
vale o povo vão vilão viceja.
Dos
ignaros o pedantismo causa urticária,
o
inocente burro não é como eles tão alimária.
À
pantalha televisiva assomam sumidades de pataco,
vigoram
ideologias de esguelha-esquerda sublimadas.
Do
Estado parasitas, ganham bem para o tabaco,
taco-a-taco
com merdas de si clonadas.
Pelo
ar restrito de minha alcova perpassa
uma
tela de Renoir, La
Petite Fille au Ruban Bleu.
Não
são de cotejo, nem tal leveza, nem tal graça:
a
pequena Irène, de perfil, em porvir que acabou.
Na
colina a casa azul ainda dardeja
como
um olho cerúleo mui atento.
É
no postal que ainda guardei a tempo
da
devastação de que tão pouco sobeja.
Em
roda-viva-catadupa-gira-tempo
sucedem-se
as notícias-sempre-as-mesmas:
ranho
de caracóis, baba de lesmas,
e
tu, grande Bocage, cagando ao vento.
Tudo
em democracia, vá – e ainda bem.
Bufa-se
guerra fora, lá para Lest’Ásia.
Por
cá, o Professor tem uma amásia
–
mas tal é só com ele & mais ninguém.
Os
elementos constantes são a alienação, a pobreza,
o
isolamento, a delinquência, a solidão, a tristeza,
a
vacuidade, a inconsciência, a inflação, a incerteza,
a
vanidade, a má-vontade, a mesmidão & a chateza.
TAP
& Novo Banco são sorvedouros de dinheiro,
o
roubo-de-colarinho-branco vai saindo impune.
Nenhuma
pessoa séria fica imune
à
ganância de tanto bandoleiro.
A
“Europa” burroplutocrata, francamente, cansa.
A
Rússia dos gorilas-brancos, muito mais.
O
fantoche norte-coreano enche a pança.
E
a América do Sul, aquilo é tudo pantanais.
Israel
passou de vítima a algoz.
É
perfeito case-study da hipócrita virtude.
Para
a Palestina, ser tão perto é atroz:
mas
tudo parece bem a Wall Street & a Hollywood.
Números
pandémicos do dia? Aqui vão:
mais
de 40 mil casos novos d’infecção;
mortos,
mais vinte e dois para a numeração
(19203
perdeu já, até agora, a Nação).
A
católica pederastia d’enrabar-meninos,
essa
clandestinidade d’apócrifo cristianismo,
parece
ter tido já melhores destinos:
mas
eu não me fio no jornalismo.
Não,
no jornaleirismo é que eu me não fio asinha.
Conheço-o
de ginjeira, sendo p’ra mim matemático
que
o que a tv-burra zurra, daninha,
é
tão-só numeral do reles circo me(r)diático.
A
safa a tudo isto está nos livros.
Pus-me
a reler Camus à força toda.
Não
me seduz o barregar dos chibos.
Estimo bem que quem discorde mais se fôda.
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