15/01/2022

REGISTOS CIVIS - 17 a 20

Rosalía de Castro

(1837-1885)


Pela tarde - 17

                      


Quanto a um de que ainda não falámos até agora, pode dizer-se, para já, que a casa lhe parece irremediavelmente mais do que meio vazia. Escusado atravancá-la de móveis, atafulhá-la de imagens, ou de quinquilharias, ou de máquinas – ou até mesmo de livros. É o que lhe parece.

Lhe a ele: um de que ainda falaremos.

Ei-lo, anónimo por enquanto, em sua tarde.

Sempre rompeu algum sol na quarta-feira, 12 do I.

Há tarefa a cumprir até às 17h00m.

Muitas arestas por adoçar, até lá.

Um pouco de esforço, alguma dedicação.

É uma tarefa de carácter prático.

Ele faz por desemaranhar-se de pensamentos colaterais.

Enquanto tudo isto lhe é constante na tarde sua contemporânea, um rapaz recebe a má-nova de certo inesperadíssimo óbito; um casal viaja de autocarro em meio a uma tempestade de areia, lá para o Norte de África; uma rapariga de camisola cor-de-caramelo penteia-se longamente à janela; no azul disponível, as aves procedem à pontuação volante do texto do ar.

O Sol titubeou, já não exerce sua magistratura, já as primícias da neonoite se instauram em as instâncias totais da realidade. O corrente Janeiro tem feito algum jus (mas, hélas!, não muito) à dimensão invernal. Sabe bem, ao deitar, ocultar o prometido cadáver em flanelas propícias, deixar tão-só de fora o nariz, imaginar que se é recolhido à cabana sita na imensidão, como um firmamento caído, da tundra.

Ele desembaraça-se já, ou finalmente, da tarefa vesperal, julgo que a razoável contento. Faz & serve-se chá, que guarnece de bolachas-de-arroz com compota de morango. Pode ser que nem assim tão meio-vã ou desamparada seja esta casa. Parte da estrutura é de madeira sólida, robusta, bem escorada. A lareira, naturalmente, foi aberta na parte de pedra da habitação. Ele empilhou lenha de ambos os lados da bocarra. É recurso funcional. Por poupança, só lhe dá ignição quando a noite já avança como derradeira promessa cumprida.

Não sairá hoje de casa, preferindo investir em horas íntimas o capital do serão. Televisor desligado, um volume francês dos anos 50/XX, um conhaque morno, talvez uma pastilha de serenal. Muito mundo se agita para lá das raias desta casa. Fora, o jardineiro vigora em o tempo secreto das existências vegetais. O residente aquieta-se na poltrona que enfrenta o lar, onde a lenha preparada espera o fósforo, o sonho do lume, o holocausto do frio que já se sente.

Disponíveis sempre, convidadas ou não, lembranças entrelaçam-se como pedúnculos de cerejas. Coisas mal remendadas, aparatosas inconsequências, fontes de direito, drenagem de pântanos, Natália Maria Antunes Pereira, olha quem. Ele sorri à revelação, como em tabuleiro de líquido fotográfico, desse rosto subindo do fundo das águas mentais. Bonito rosto, róseas feições, irremediáveis léguas/décadas, mal nenhum.

Este que sorri é Túlio Serafim d’Anes Galo, ei-lo nomeado.


 

Túlio - 18

                      


 

Ainda aparece algumas vezes no Café d’Alice, mas não tantas quantas, nos pretéritos anos 80/XX, soía. Separou-se em maus-termos daquela alemã-amor-de-praia. Passou, ao que consta, mais do que um mau bocado. O novo emprego foi providencial – além de se ter mudado para o Tovim, esse Tovim de onde Mestre Nemésio saía a cavalo até ao Dianteiro: upa-upa que é de garupa. Talvez apareça na Alice na próxima sexta-feira, 14 de Janeiro. Até lá, porém, há que serem escritas mais linhas, costuradas mais algumas páginas, mais assentos averbados, mais assentados averbamentos.

Tem mantido relações epistolares com pessoas de largo espectro de laborações solitárias:

um engenheiro de pontes vivendo em Ílhavo;

um topógrafo de Santiago do Cacém;

uma manicura da Alameda lisbonense;

um professor de geometria nado no Barreiro;

um poeta de Sines que dorme calçado;

uma duquesa de extraordinária longevidade;

um filho de guarda-rios chamado Cândido;

um editor de patranhas de auto-ajuda;

e um jogador do Esperança de Lagos na época 1975/76.

Quando sai a passear pela Cidade, desce a Elísio de Moura, acampa cerca de hora e meia no Calhabé, em jornada boa sobe a dos Combatentes, inspira fundos haustos de ar verde no Botânico, bebe uma cerveja entre a estudantada na Praça, sobe a Celas, sobe aos Olivais, sobe ao Tovim. Ainda palmilha boas milhas. Mas não sai muito, já não sai muito. Parece que todos acabam por se recolher, primeiro, e por acabar-acabar, depois – quando até os depois se acabam.

 


 

Carta do poeta de Sines a Túlio Galo - 19


 

Senhor:

Tende piedade nenhuma de mim.

Se neste artificioso bosquete de betão resido, mea culpa só, tão-só, somente & apenas: tenho por norma experimentada que em qualquer pardieiro a minha solitude seria da mesma irrelevância.

Olhe o senhor que sou nada mal remunerado. Tenho sinecura, vulgo tacho – e por mecenas da minha poesia-part-time certa matrona de pastelaria com quem fornico às terças-feiras, salvo se vésperas de feriado.

A si, sou-lhe em plenitude grato por ler-me as estrofes. Não as julgo publicáveis senão em edição-de-autor – mas nem eu as considero de tal mérito, ou necessidade, ou sacrifício, ou desperdício. Sigo compondo-as, no entanto. Matar-me, não me mato, pois que a vida se encarregará de tal cometimento.

Viveu aqui em Sines um poeta-Poeta a sério: Al Berto. Sabe o senhor Túlio que ele nasceu aí-Coimbra? Não é todavia um poeta conimbricense/coimbrinha: é poeta-Poeta, não é um Torga nem um Alegre. Desculpe-me o estar com estas coisas a queimar-lhe tempo, mas de verdade não tenho com quem falar. (E não, não conta o que gemo às terças por uma nota de cem & uma caixa de empadas, que não vou em doces.)

Se algum dia, por alguma estranha razão, por aqui passar, queira ser senhor da supina cortesia de me noticiá-lo. Almoçaríamos a meu convite, claro. Ou jantaríamos. (Nunca acontecerá, bem o pressinto.)

Conte-me mais, conte-me quase tudo.

 

Jesualdo Rita de Menezes Pargo


 

Averbamentos - 20

                      


 

Faltam dezassete dias para as eleições legislativas.

Tem havido campeonato de debates na televisão.

Fora deste circo, vivem no País as forças-vivas,

às quais corresponde significativa população.

 

A rotunda matrona, ressuscitada dos arquivos,

perora a mote de um autor de culto dito maldito.

Nem tal autor nem tal matrona são já vivos.

Morrer nunca é só, Zé Gomes Ferreira, por um bocadito.

 

Gringos travestidos, tenças corruptas, editores sem porvir,

pançudos assessores-culturais em, bien sûr, Paris.

Bobos & bobós da corte & quantas putas a parir

bastardos que vós, sérias matronas, também paris.

 

Achego-me à vidraça elevada que ali esclarece a marquise,

miro sem ciência o velho novo mundo além plasmado,

faço café, torro pão, nada me falta de que precise,

deve ser pêta Os Lusíadas salvos p’lo Zarolho a nado.

 

Em esplanada a que não voltarei, li outrora Rosalía.

Foi em cidade que mesmo à torreira me soube a fria.

Decapito um a um tais anos maus, desperdiçados.

Enfim todavia: pois que irremediáveis, estão remediados.

 

Fátima do Céu Pacheco Moniz, estrela-de-cartão de Carcavelos,

divorcia-se de Luiz Baganha de Gonelha Vasconcelos.

Casa-se, ao que por ’í dizem, na véspera das eleições

com Mário Alberto Corrêa Bordalo, o da central de camiões.

 

Filmados, ressuscitados, os mortos literários

voltam para assombrar os instantes ilegíveis

do analfabeto presente, pasto de sicários,

vários dos quais, aliás, no dia 30, elegíveis.

 

Sobre fundo par(a)do, aind’assim algumas tintas,

amarelazulilássépiarroxocre em remexida paleta.

Barcos que trilham terra, ínsuas, quintas.

Cristos caminhando sobre água – e sem muleta.

 

É por vezes precário, isto de ser-se coevo do transitório.

Como dormir em cama com rodas, por assim dizer.

Há que merecer merecimento, não se nasce meritório.

Nasce-se porque se nasce, às vezes sem se o merecer.

 

Nem todos os mortos são literários, convenhamo-lo.

Neste aspecto, prolongam afinal muitos vivos de agora.

Quanto ao tempo ainda por viver – vivamo-lo,

que cedo se faz tarde, tarde de mais, vai-se tud’embora.

 

Em outeir’alto a capelinha à luz alveja,

no vale o povo vão vilão viceja.

Dos ignaros o pedantismo causa urticária,

o inocente burro não é como eles tão alimária.

 

À pantalha televisiva assomam sumidades de pataco,

vigoram ideologias de esguelha-esquerda sublimadas.

Do Estado parasitas, ganham bem para o tabaco,

taco-a-taco com merdas de si clonadas.

 

Pelo ar restrito de minha alcova perpassa

uma tela de Renoir, La Petite Fille au Ruban Bleu.

Não são de cotejo, nem tal leveza, nem tal graça:

a pequena Irène, de perfil, em porvir que acabou.

 

Na colina a casa azul ainda dardeja

como um olho cerúleo mui atento.

É no postal que ainda guardei a tempo

da devastação de que tão pouco sobeja.

 

Em roda-viva-catadupa-gira-tempo

sucedem-se as notícias-sempre-as-mesmas:

ranho de caracóis, baba de lesmas,

e tu, grande Bocage, cagando ao vento.

 

Tudo em democracia, vá – e ainda bem.

Bufa-se guerra fora, lá para Lest’Ásia.

Por cá, o Professor tem uma amásia

– mas tal é só com ele & mais ninguém.

 

Os elementos constantes são a alienação, a pobreza,

o isolamento, a delinquência, a solidão, a tristeza,

a vacuidade, a inconsciência, a inflação, a incerteza,

a vanidade, a má-vontade, a mesmidão & a chateza.

 

TAP & Novo Banco são sorvedouros de dinheiro,

o roubo-de-colarinho-branco vai saindo impune.

Nenhuma pessoa séria fica imune

à ganância de tanto bandoleiro.

 

A “Europa” burroplutocrata, francamente, cansa.

A Rússia dos gorilas-brancos, muito mais.

O fantoche norte-coreano enche a pança.

E a América do Sul, aquilo é tudo pantanais.

 

Israel passou de vítima a algoz.

É perfeito case-study da hipócrita virtude.

Para a Palestina, ser tão perto é atroz:

mas tudo parece bem a Wall Street & a Hollywood.

 

Números pandémicos do dia? Aqui vão:

mais de 40 mil casos novos d’infecção;

mortos, mais vinte e dois para a numeração

(19203 perdeu já, até agora, a Nação).

 

A católica pederastia d’enrabar-meninos,

essa clandestinidade d’apócrifo cristianismo,

parece ter tido já melhores destinos:

mas eu não me fio no jornalismo.

 

Não, no jornaleirismo é que eu me não fio asinha.

Conheço-o de ginjeira, sendo p’ra mim matemático

que o que a tv-burra zurra, daninha,

é tão-só numeral do reles circo me(r)diático.

 

A safa a tudo isto está nos livros.

Pus-me a reler Camus à força toda.

Não me seduz o barregar dos chibos.

Estimo bem que quem discorde mais se fôda.



 

Sem comentários:

Canzoada Assaltante