21/01/2022

REGISTOS CIVIS - 30 & 31



Escandentes – 30


Uma história-de-amor encontrou residência em papel
Eduardo & Sílvia, ainda 25 anos ele lhe a ela sobreviveu
Coisas de saúde, de falta dela, dela-saúde, dela-Sílvia
Vulnerabilidade do cólon, idem do coração, o diabo
Nem todas as love-stories chegam a documento
E as que chegam, nem todas se fixam em verso solto ou medido.

Um conto-de-solidão, de tão comum, nem de papel precisa
Pense-se, se se quiser, em Beatriz, costureira de mão-cheia
Em Marilena, caixeirinha de confeitaria, coitada
Em Apolino, que há (todos os) anos mira o rio quieto
Em Joel, que viaja sempre sem chegar, afinal retornando sempre
Não é inventar a roda nem a pólvora, assentar isto.

Um relato-de-memória, desejado ou temido, muitas vezes
Manuel Eborano, 79 anos, pousa o jornal & relata
Veio para esta cidade ainda ganim/gaiato/galifato
Foi aprendiz-servente de ofícios os mais diversos
Acabou capaz capataz de obras em firma sólida
Hoje relata estes pretéritos oficiais suspirando um pouco.

Como escandentes gavinhas, entrelaçam-se heras & eras
Idades & cidades, caminhos & caminhas, centros & dentros
Até a mais vulgar atenção dá conta do emaranhamento
Do modo como tudo com tudo se engrenha
Enreda, intrinca, enguedelha, arrepela, embaraça
Sim, já no liceu a Celeste assim falou & disse – e muito bem.

Companhia – 31


    Decorre a tarde de Quinta-Feira, 20 de Janeiro. Da máquina audiovisual, mana conversa de gente profissionalizada mui sabedora de suas matérias. Se descontextuadas, muitas elocuções parecem rutilar de peculiar fulgor. Fidelissecretariamente, inventario algumas capturas:

Mesmo quinze minutos que estivéssemos assim
Sempre em actividade física, sempre a sorrir
Para estimular as hormonas, daquelas de doer a barriga
Estes últimos anos, quanto mais fechados, mais deprimidos
Quando estou, não é por mal, pelo contrário
Não sei explicar, estou tão nervosa, constrangida
Sempre fomos uma família mas muito mal, olha
Ríamos muitas vezes, tirando um peso das costas
Se fosse outra pessoa, outra solução, há filmes
Até os mais novos, mesmo não sendo a cara do pai
Se quiser concordar com alguém, vire a cabeça
Quando referiu a novela, fez uma expressão típica
Lembrava-se também da Amazónia, tão estranho
Vamos estranhando, não-familiarizados, no geral
Às vezes, são questões próprias da cultura
Se há alguém que não diz, esse é com ninguém
Uma chamada Dulce, via-se que estava contrariada
Lá está, se calhar também era uma terapia-de-choque
Temos o Chaplin de Modern Times, sim, demiurgo
A chuva é tão necessária quão o sol, senhores
A psicomorfologia facial importa, senhoras
Aborrecimento, desinteresse, zanga, revolta
Ansiedade, insegurança, desconforto, aflição
Comoção, choque, titilação, prurido

    Decorre a tarde, a noite é certa mas só para quem a ela chega. A máquina imago-sonora é uma companhia. A pessoa consegue fazer de conta que não dá de/por si tão desamparada, tão às moscas, tão a ver navios de um cais que não há. Então:

No seu caso, todos passamos por coisa parecida
Ao sermos bombardeados, oxalá tenhamos dito o que queríamos
Estar ali alguém atrás de mim, fazia-me espécie
Um trabalho mas não propriamente de vendas
Manter esta ideia de que não vemos o outro lado
Etapas mais fidedignas, com planeamento meticuloso
Caramba, esta não era suposto estar ligada
Tomarmos sempre nota do que está a ser-nos dito
Se bem entendi, o senhor pretende
Às vezes, lá está, não sabem se é para ali
Respondermos à despedida, igualmente importante
Minorar algum estrago, nós ali na saída
Quando o público tem oportunidade de falar
Pelo menos para mim, muitas vezes com os nervos
Queremos o que vais dizer depois de amanhã
As notas que deixou, deixou-as manuscritas
O convidado pode expor quão livremente entender
Temos essa liberdade, perante maior e/ou menor
Algo de outra matéria, ainda há pouco
Tal como a pessoa, também o interesse desperta
Fez o seguimento dos alinhados, em 1988
Numa situação mais informal, máximo dez minutos
Um dos sítios por onde passei antes de ti
Tinha chegado de novo ao espaço

    Dão-se já as 16h45m. Da janela maior, visão de pátio com gente lavando garrafões. Pai & filho em acção. O velho, dando mangueiradas. O júnior, acarretando o vasilhame lavado & trazendo o por-lavar. Freme à brisa leve a velha nespereira. Em transe de mor pachorra, o cão (castanho, grande, sénior) dormita, apenas a cabeça de fora da casota. Os três fazem-se companhia em triangular reciprocidade. Nesta casa, rumora a maquineta vidente-falante:

Disse que estaria sempre junto de/a nós, mas
O trabalho dele tem sido desconfiar de matrículas
Já vazou algo nas eiras? Sim, já vazei algumas
É possível extrair uma moral da física-das-partículas
It’s gotta be illegal
Só há que sobreviver a esta parte
Por merenda, algo que seja comestível
De qualquer jeito, só que com arte
Ao menos, que nos livrassem deste mal
Não há reembolso, passado o prazo
É ver o que por aí vai no hospital
Triste é depender tanto do acaso
Isto é propriedade privada, acesso interdito
Será que ela sabe o quanto ainda o ama?
Obrigado, por me terem afastado daquele tipo
Ela confundiu afeição com ginástica-de-cama
Pessoas que procuram a vida inteira
Ninguém nos pediu nem ouviu conselhos
Cada um tem a sua própria maneira
Nenhuma religião me há-de pôr de joelhos
Resiste-se como se pode em tempos maus
A obra legada é baluarte democrático
Os passos é que dão sentido aos degraus
O erro processual é que tem sido sistemático

Já em sua glória simples ocorre a manhã de Sexta-Feira, 21 de Janeiro. E:

Aquela e não outra
Veio requerer a junção aos autos
Só tipo fotografia à/da porta de casa daquela pessoa
Daquela e não doutra
Há ainda tribunais que mandam afixar
Mandam afixar o edital na junta de freguesia
Ercília de Fátima Joanes da Nóbrega
Se foi possível apurar que a pessoa vive lá
Imaginemos que não consegue entrar no prédio
Em princípio, só não havendo alternativa possível
Negócios que correram mal, há pessoas, acontece
Nem toda a gente é sacana, há empatia
O genro separa-se da filha e não paga
Mandou vir material em nome do sogro
Muito bem, mas foi uma terceira pessoa a assinar
Dar conhecimento de aquela, não de outra
Quando receber esta carta simples
Esteve lá alguém que lhe diz respeito a ele
Um bocado constipado, fui ao local, voltei para trás
A carta também, também voltou para trás
Na Rua D. João III
Pedro Daniel Natalino d’Aboim
Art.º 233 do Código de Processo Civil, é ir vê-lo
Primeira, cita-se; depois, notifica-se

    O fluxo é organismo (mui) vivo, não cessa. Pode mudar (e muda) de agentes-(e)fluentes, mas não de si, de si mesmo jamais muda. Os elocutores são perecíveis – a elocução, não. Assim pois:

Por isso é que ela esteve presente
Maria do Céu Videira de Lecestre
Outra comarca, outra pessoa singular
Alguém se obriga perante outra pessoa
Serviço por remuneração, a completar no destino
Basta que alguém seja o que for
Chegou, assinou, alguém recebe e é identificado
Uma terra & uma acta: lavradas ambas
Fomos chamados por partes
Susana Maria Cabral Castilho
Não foi possível, invertera-se
Os créditos restaram insatisfeitos
Atentas as cominações, ó Ilustres!
Demora mais do que o esperado
Hoje não é possível, tantos xis euros
Justificou-se assim, a coisa até correu bem
Bernardino Salvador d’Andrade Memento
OK, não esquecer o princípio Extra Vel Ultra Petitum
Nem sempre a pessoa é insondável
Fundamentos de facto e de direito da pretensão
Capacidade das partes e legalidade do resultado da conciliação
Cumulação de pedidos, conciliação frustrada
Fruste & frusto, o fruto-em-tempo
Deixai-me só ver se foi em Setembro ou não

    Não é difícil ou precário perceber a condição arenosa das enumerações supra. Foram esvurmadas à oralidade corrente, é por isso. Também: são modo de ordenar passageiramente um caos que não passa. E ainda: servem de autos mais ou menos representáveis em teatro de vozes. Quanto à sua forma, é evidente virem a 24 linhas. Nisto, acaba-se amanhã de Sexta-21-do-I.


 

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