© Olle S. Nevenius
Trepidantes, esquivas, furtivas aventuras - 12
Tudo
verídico, valha tal o que valer:
Quatro
pessoas, pelo pré-entardenoitecer de segunda-feira, 10 de Janeiro,
transmitindo-se informações de teor jurídico-político-administrativo. Intimamente,
secretamente, uma das pessoas diz-se: “Estou a ser útil, prático, não estou
a fazer versos.” São três mulheres e um homem. Às 17h12m, desligam-se, prometendo
regressar amanhã ao mesmo trabalho.
Um
grande barco vermelho em trânsito entre ilhas. Bela enormidade mastodôntica de
tal embarcação. Comanda-a um homem alto de barba fulva, não dizem o nome dele, mostram-no
apenas: de pé, em silêncio, olhando em frente, sempre em frente, avaliando,
avaliando sempre, sem pausa nem interlúdio.
Qual
leão podremente decrépito e odremente saciado mirando de longe as gazelas (vibra
o revérbero da savana crestada), o velho caixeiro de farmácia vendo passar o
mulherio pela Praça 8 de Maio.
Macambúzia
sordidez das infidelidades conjugais. Pequeninas infâmias de gente pequenina. Casos
escuros, uns. Outros, inventados. Invariavelmente tristes, todos.
Código - 13
A
existência individual como código de procedimento auto-administrativo. A
terça-feira-11-de-Janeiro acontecendo em total alheamento quanto a cada
indivíduo (humano ou não). Aceitar-se ou não isto – é indiferente à natura da
indiferença. Intimamente, cada um vise a proporcionalidade possível. Ou a sua
legitimidade mesma. Em vigília incessante –pois que a distracção pode ser
mortífera. Nada que a solidão essencial afinal não abarque.
Cronometricamente,
um minuto da infância era de sessenta segundos; uma hora da adolescência, de
sessenta minutos; da maturidade, um dia contava vinte e quatro horas; na
velhice, a semana conta outros dias, nem sempre sete.
O
parágrafo anterior é & não é um disparate. Toca uma verdade objectiva (incorpórea
também), ao mesmo tempo que sujeita o sujeito a uma espécie de absorto
desencontro de si para consigo. Também é código, também é procedimento.
Quanto,
ou que, não é solilóquio?
Que
plenário não é de solidões?
É
vero o encontro? Talvez: só que o
de
sozinhos disfarçando multidões.
Não
escapa a isto Liberto, em sua garagem dormitória; nem Borges, que há muito
partilha tecto – mas não cama nem mesa – com a mulher; nem o Homem-da-Barbuda-da-Confeitaria;
nem Moleiro, polímato equívoco; nem o bisavô galego; nem o deponente; nem o
engraçado Péricles; nem Arrozina – ninguém escapa.
Terça-feira,
11 de Janeiro. A lapsos, o Sol rompe a campânula nublante, espevita as aves, lambe
a oiro as bandas do Campo, choupos, salgueiros, pinheirais da orla noroeste. É
muito bonito & é para todos. Acontecimentos destes (a)parecem como
lenitivos, paliativos, construtivos até. Tudo vai da auto-administração? Ou nem
tudo mas alguma coisa, um mínimo-sobrevivente. De tal se siga fazendo civil – e
cívico – registo.
Dias assim - 14
Atracção
como repulsa. Exterior como íntima
agitação. O povo dos sonhos agindo mudo-a-preto-e-branco no sono de cada um(a).
Cacos quebrados de dias antigos – ou, alguns, futuros. Infinitude das coisas
finitas. Uso & fruição de uma transitoriedade. Entontece-se considerando a
cósmica vastidão. O mesmo quanto ao infinito-para-dentro, género átomo-constelação.
E enquanto tudo isto, a propriedade-horizontal das fracções de prédios, dentro
das que a pobre gente & a pobre vida.
Dias
assim – mesmo assim, erguendo um livro, mesmo erguendo um livro assim mesmo.
Das pessoas (ou figuras; ou espectros) já referidas neste canhenho, muito bem, nem
tudo se perde – pelo menos, por enquanto.
Entre
títulos & capítulos, nunca desistir. Nunca d-existir. Acabamento & terminação
são camiões desenfreados que do ápice da ladeira vêm zurrando sem retrocesso
possível – aproveite-se por enquanto a boleia.
Sim,
dias-assim-noites.
Jongbloed - 15
Terça-feira, 11 de Janeiro de 2022
Outra
manhã virá diáfana refrescar este quarto. Dúvida nenhuma. Por enquanto, os (poucos)
móveis rangem como ossos velhos. Deixá-los. Por frinchas recônditas como ratos,
a humidade alastra, mana, colhe & tolhe. Deixá-la.
Descendo
a ladeira da Estação Velha, um anão vem levitando sem pressa. Deve ter ido ao
Rodrigo beber vinho-do-lavrador. Passa pelo túnel sob a via-férrea, mora ali
para o Porto Santiago, por aí. Trabalha numa das estufas do Bolão. Já passou os
cinquenta. O pai era holandês, refugiou-se em Portugal em década pior do que
esta.
Este
João José Jano Jongbloed é figura de mui refinada solidão. O corpo não ajuda.
Ele cultiva morangos, hortênsias, grelos, lírios. Recebe o vencimento, gasta um
terço, poupa o resto no banco dos Correios. À noite, encerrado, sente o grande
vento dando nas grandes árvores. Quase tudo lhe é grande – ou lhe parece. Mas cada
vez menos, à medida que envelhece. O medo desapareceu, a raiva também. Com um
banco de madeira, destruiu o joelho a um calmeirão que quis humilhá-lo. Foi durante
o Mundial/86, o ano do Maradona. Tantos anos volvidos, o episódio fá-lo ainda
portador de uma certa aura máscula.
E
porque ganha cada dia, dia a dia, dia por dia, merece a noite com a manhã que
dela nasce. E tal como os altos, também para ele o caminho é longo mas curtas
as pernas.
Interregno - 16
Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2022
Alguém
em movimento dá andamento ao mundo
O
circunscrito mundo de seu procedimento
Tenho
sabido de circunstâncias interessantes
Recreio-me
conhecendo, sabendo porém que esquecerei.
Herdar
activos não é como herdar passivos
O
mundo dos bens também acarreta males
Milhares
de moedas podem esmagar a ex-infância
Morre-se
muito de dívidas & de complicações renais.
É
por fora apenas que sei algo deste mundo
Destes
afinal virtuais alguéns em movimento
O
meu castelo é de cartas erguidas às nuvens
Primo
pela irrelevância sem imposto-de-selo.
Erijo
a literatura figuras que se me particulam
Atrai-me
a caneta cada particularidade
Desde
que capaz de uma universalidade ao menos local
Não
sei como distingo, sei que se me distingue(m).
Ontem
ainda, pelo entardenoitecer, amparei a fadiga
Estendendo
um pouco o porco, perdão, o corpo
Televisor
desligado, cortinados justapostos
O
chá arrefecendo à beira da mão adormecida.
Amanhã,
não sei. Amanhã é só quinta-feira. E depois?
Laborarão
decerto as autoridades tributário-aduaneiras
Os
herdeiros confrontar-se-ão o mais vil/ferozmente
E
as pombas farão pela vida lendo o chão com o bico.
Há
mais de trint’anos, eu gostava de ir-me de comboio
Eram
viagens breves mas que se me alongaram
A
ponto de ’inda hoje seguir, por assim dizer, indo
Mirando
os rápidos postes exclamativos da corrida.
Revivo
esse meu trânsito em estado quás’indolor
Uma
pessoa acaba habituando-se a ser apeadeira
Apeei-me
de facto desse circuito hoje imprestável
A
não ser para versos, como em este registo.
A
alheia mediocridade não oblitera a própria
A
hetero-irrisão é irmã da que me assiste
Julgo
haver nisto alguma sabença não-despicienda
Nem
tudo é merda, perdão, perda.
O
fruto de cada dia é em si o dia mesmo
Algum
ouro remanesce alhures, simbólico mormente
O
ouro-ouro também, mas este gera doenças
É
uma pandemia de especial acutilância deletéria.
Ontem
à noite, acabei-me estatelado cedo no sono
Vi-me
teletransportado para um tempo estranho
O
tempo em que os irmãos falavam
Refiro-me
aos mortos mas aos vivos também.
Registos
a averbar como a anular, quero saber
Quero
muito saber quase sempre, mas só quase
Também
a ignorância pode ser gratificante
Ah
sim, também o néscio rejubila infantemente.
Sob
a abóbada intracraniana, as circunvoluções da noz
São
toda uma central hidroeléctrica esfuziante
Não
há uma mente igual a outra, só a miséria
Só
a miséria se clona recíproca sempre.
Isenção,
diminuição ou agravamento de emolumento
Recebimento
efectivo de gordos honorários
Qualidade
predial da posse, afortunado possidente
Afortunado
ou infeliz, dá muitas vezes (n)o mesmo.
À
janela alta assomo para mirar os longes
Máquinas
amarelas laboram mudamente à beira-vala
Ainda
há quem fora de versos aja em conformidade
Não
é tempo perdido saber que há quem o ponha a andar.
Procedo,
por mim, à organização de uma conservatória
Perfeitamente
vã, bem o sei, é a minha repartição possível
Pertencem-me
as decisões instrutórias, a tinta, os carimbos
Todas
as certezas, perdão, certidões impermanentes.
Informação
matricial? Alguma bem recorrente
Outra
mui menos disponível ou sequer alcançável
Por
estes dias nem sempre o artigo natural se releva
Há
muito de poço na tal noz hidroeléctrica.
Espero
notícias que receber não quero ou tolero
A
partir de (in)certa idade é-se sentinela-perpétua
Tem
sido assim como escrevo, sem volta a dar-lhe
Todavia
julgo ser da comum condição a todo o vivo.
Na
sobreloja da Sapataria Santana um rapaz
Na
rua passam senhoras com seus petizes
O
cego Eduardo ladainhando-se à esmola
O
chinês das gravatas budamente sentado à porta.
Em
1979, à face do Mercado D. Pedro V, na manhã cinzenta
Sobem
a Celas/Olivais os eléctricos cor-de-canário-velho
Um
casal ainda moço carregado de víveres
Ainda
o posto médico inicia a Avenida Sá da Bandeira.
Dentro
– é dentro que traçamos o trevo-viário
Ante
encruzilhadas pode contar (ou não) o passado
Desconheço
por que me assola tal povo dos sonhos
Pessoas
esbracejando alarmes quando já nada arde.
Queríeis
quê? Serdes por aí picaramente épicos à Fernão Mendes Pinto?
Podeis
sê-lo deveras – mas não conta para a reforma.
Queiramo-lo ou não, o hino é a música-do-pingo-doce
O século corrente é quanto milénio pode(mos) ser.
Sem comentários:
Enviar um comentário