13/01/2022

REGISTOS CIVIS - 12 a 16

© Olle S. Nevenius


Trepidantes, esquivas, furtivas aventuras - 12


Segunda-feira, 10 de Janeiro de 2022

                      

 

Tudo verídico, valha tal o que valer:

 

Quatro pessoas, pelo pré-entardenoitecer de segunda-feira, 10 de Janeiro, transmitindo-se informações de teor jurídico-político-administrativo. Intimamente, secretamente, uma das pessoas diz-se: “Estou a ser útil, prático, não estou a fazer versos.” São três mulheres e um homem. Às 17h12m, desligam-se, prometendo regressar amanhã ao mesmo trabalho.

Um grande barco vermelho em trânsito entre ilhas. Bela enormidade mastodôntica de tal embarcação. Comanda-a um homem alto de barba fulva, não dizem o nome dele, mostram-no apenas: de pé, em silêncio, olhando em frente, sempre em frente, avaliando, avaliando sempre, sem pausa nem interlúdio.

Qual leão podremente decrépito e odremente saciado mirando de longe as gazelas (vibra o revérbero da savana crestada), o velho caixeiro de farmácia vendo passar o mulherio pela Praça 8 de Maio.

Macambúzia sordidez das infidelidades conjugais. Pequeninas infâmias de gente pequenina. Casos escuros, uns. Outros, inventados. Invariavelmente tristes, todos.


 

Código - 13


                      


A existência individual como código de procedimento auto-administrativo. A terça-feira-11-de-Janeiro acontecendo em total alheamento quanto a cada indivíduo (humano ou não). Aceitar-se ou não isto – é indiferente à natura da indiferença. Intimamente, cada um vise a proporcionalidade possível. Ou a sua legitimidade mesma. Em vigília incessante –pois que a distracção pode ser mortífera. Nada que a solidão essencial afinal não abarque.

Cronometricamente, um minuto da infância era de sessenta segundos; uma hora da adolescência, de sessenta minutos; da maturidade, um dia contava vinte e quatro horas; na velhice, a semana conta outros dias, nem sempre sete.

O parágrafo anterior é & não é um disparate. Toca uma verdade objectiva (incorpórea também), ao mesmo tempo que sujeita o sujeito a uma espécie de absorto desencontro de si para consigo. Também é código, também é procedimento.

Quanto, ou que, não é solilóquio?

Que plenário não é de solidões?

É vero o encontro? Talvez: só que o

de sozinhos disfarçando multidões.

Não escapa a isto Liberto, em sua garagem dormitória; nem Borges, que há muito partilha tecto – mas não cama nem mesa – com a mulher; nem o Homem-da-Barbuda-da-Confeitaria; nem Moleiro, polímato equívoco; nem o bisavô galego; nem o deponente; nem o engraçado Péricles; nem Arrozina – ninguém escapa.

Terça-feira, 11 de Janeiro. A lapsos, o Sol rompe a campânula nublante, espevita as aves, lambe a oiro as bandas do Campo, choupos, salgueiros, pinheirais da orla noroeste. É muito bonito & é para todos. Acontecimentos destes (a)parecem como lenitivos, paliativos, construtivos até. Tudo vai da auto-administração? Ou nem tudo mas alguma coisa, um mínimo-sobrevivente. De tal se siga fazendo civil – e cívico – registo.


 

Dias assim - 14


 

Atracção como repulsa.   Exterior como íntima agitação. O povo dos sonhos agindo mudo-a-preto-e-branco no sono de cada um(a). Cacos quebrados de dias antigos – ou, alguns, futuros. Infinitude das coisas finitas. Uso & fruição de uma transitoriedade. Entontece-se considerando a cósmica vastidão. O mesmo quanto ao infinito-para-dentro, género átomo-constelação. E enquanto tudo isto, a propriedade-horizontal das fracções de prédios, dentro das que a pobre gente & a pobre vida.

Dias assim – mesmo assim, erguendo um livro, mesmo erguendo um livro assim mesmo. Das pessoas (ou figuras; ou espectros) já referidas neste canhenho, muito bem, nem tudo se perde – pelo menos, por enquanto.

Entre títulos & capítulos, nunca desistir. Nunca d-existir. Acabamento & terminação são camiões desenfreados que do ápice da ladeira vêm zurrando sem retrocesso possível – aproveite-se por enquanto a boleia.

Sim, dias-assim-noites.


 

Jongbloed - 15

                      

Terça-feira, 11 de Janeiro de 2022

 

Outra manhã virá diáfana refrescar este quarto. Dúvida nenhuma. Por enquanto, os (poucos) móveis rangem como ossos velhos. Deixá-los. Por frinchas recônditas como ratos, a humidade alastra, mana, colhe & tolhe. Deixá-la.

Descendo a ladeira da Estação Velha, um anão vem levitando sem pressa. Deve ter ido ao Rodrigo beber vinho-do-lavrador. Passa pelo túnel sob a via-férrea, mora ali para o Porto Santiago, por aí. Trabalha numa das estufas do Bolão. Já passou os cinquenta. O pai era holandês, refugiou-se em Portugal em década pior do que esta.

Este João José Jano Jongbloed é figura de mui refinada solidão. O corpo não ajuda. Ele cultiva morangos, hortênsias, grelos, lírios. Recebe o vencimento, gasta um terço, poupa o resto no banco dos Correios. À noite, encerrado, sente o grande vento dando nas grandes árvores. Quase tudo lhe é grande – ou lhe parece. Mas cada vez menos, à medida que envelhece. O medo desapareceu, a raiva também. Com um banco de madeira, destruiu o joelho a um calmeirão que quis humilhá-lo. Foi durante o Mundial/86, o ano do Maradona. Tantos anos volvidos, o episódio fá-lo ainda portador de uma certa aura máscula.

E porque ganha cada dia, dia a dia, dia por dia, merece a noite com a manhã que dela nasce. E tal como os altos, também para ele o caminho é longo mas curtas as pernas.


 

Interregno - 16

                      

Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2022

 

Alguém em movimento dá andamento ao mundo

O circunscrito mundo de seu procedimento

Tenho sabido de circunstâncias interessantes

Recreio-me conhecendo, sabendo porém que esquecerei.

 

Herdar activos não é como herdar passivos

O mundo dos bens também acarreta males

Milhares de moedas podem esmagar a ex-infância

Morre-se muito de dívidas & de complicações renais.

 

É por fora apenas que sei algo deste mundo

Destes afinal virtuais alguéns em movimento

O meu castelo é de cartas erguidas às nuvens

Primo pela irrelevância sem imposto-de-selo.

 

Erijo a literatura figuras que se me particulam

Atrai-me a caneta cada particularidade

Desde que capaz de uma universalidade ao menos local

Não sei como distingo, sei que se me distingue(m).

 

Ontem ainda, pelo entardenoitecer, amparei a fadiga

Estendendo um pouco o porco, perdão, o corpo

Televisor desligado, cortinados justapostos

O chá arrefecendo à beira da mão adormecida.

 

Amanhã, não sei. Amanhã é só quinta-feira. E depois?

Laborarão decerto as autoridades tributário-aduaneiras

Os herdeiros confrontar-se-ão o mais vil/ferozmente

E as pombas farão pela vida lendo o chão com o bico.

 

Há mais de trint’anos, eu gostava de ir-me de comboio

Eram viagens breves mas que se me alongaram

A ponto de ’inda hoje seguir, por assim dizer, indo

Mirando os rápidos postes exclamativos da corrida.

 

Revivo esse meu trânsito em estado quás’indolor

Uma pessoa acaba habituando-se a ser apeadeira

Apeei-me de facto desse circuito hoje imprestável

A não ser para versos, como em este registo.

 

A alheia mediocridade não oblitera a própria

A hetero-irrisão é irmã da que me assiste

Julgo haver nisto alguma sabença não-despicienda

Nem tudo é merda, perdão, perda.

 

O fruto de cada dia é em si o dia mesmo

Algum ouro remanesce alhures, simbólico mormente

O ouro-ouro também, mas este gera doenças

É uma pandemia de especial acutilância deletéria.

 

Ontem à noite, acabei-me estatelado cedo no sono

Vi-me teletransportado para um tempo estranho

O tempo em que os irmãos falavam

Refiro-me aos mortos mas aos vivos também.

 

Registos a averbar como a anular, quero saber

Quero muito saber quase sempre, mas só quase

Também a ignorância pode ser gratificante

Ah sim, também o néscio rejubila infantemente.

 

Sob a abóbada intracraniana, as circunvoluções da noz

São toda uma central hidroeléctrica esfuziante

Não há uma mente igual a outra, só a miséria

Só a miséria se clona recíproca sempre.

 

Isenção, diminuição ou agravamento de emolumento

Recebimento efectivo de gordos honorários

Qualidade predial da posse, afortunado possidente

Afortunado ou infeliz, dá muitas vezes (n)o mesmo.

 

À janela alta assomo para mirar os longes

Máquinas amarelas laboram mudamente à beira-vala

Ainda há quem fora de versos aja em conformidade

Não é tempo perdido saber que há quem o ponha a andar.

 

Procedo, por mim, à organização de uma conservatória

Perfeitamente vã, bem o sei, é a minha repartição possível

Pertencem-me as decisões instrutórias, a tinta, os carimbos

Todas as certezas, perdão, certidões impermanentes.

 

Informação matricial? Alguma bem recorrente

Outra mui menos disponível ou sequer alcançável

Por estes dias nem sempre o artigo natural se releva

Há muito de poço na tal noz hidroeléctrica.

 

Espero notícias que receber não quero ou tolero

A partir de (in)certa idade é-se sentinela-perpétua

Tem sido assim como escrevo, sem volta a dar-lhe

Todavia julgo ser da comum condição a todo o vivo.

 

Na sobreloja da Sapataria Santana um rapaz

Na rua passam senhoras com seus petizes

O cego Eduardo ladainhando-se à esmola

O chinês das gravatas budamente sentado à porta.

 

Em 1979, à face do Mercado D. Pedro V, na manhã cinzenta

Sobem a Celas/Olivais os eléctricos cor-de-canário-velho

Um casal ainda moço carregado de víveres

Ainda o posto médico inicia a Avenida Sá da Bandeira.

 

Dentro – é dentro que traçamos o trevo-viário

Ante encruzilhadas pode contar (ou não) o passado

Desconheço por que me assola tal povo dos sonhos

Pessoas esbracejando alarmes quando já nada arde.

 

Queríeis quê? Serdes por aí picaramente épicos à Fernão Mendes Pinto?

Podeis sê-lo deveras – mas não conta para a reforma.

Queiramo-lo ou não, o hino é a música-do-pingo-doce

O século corrente é quanto milénio pode(mos) ser.


 

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Canzoada Assaltante