05/01/2022

PARNADA IDEMUNO - 865 (texto final)

© DA.


865 (& último)

Sexta-feira,
31 de Dezembro de 2021

    Último dia, últimas linhas deste (ainda corrente) Parnada Idemuno. Os meus poucos & escandalosamente discretos Leitores chegam comigo ao cabo de uma viagem diarístico/anuária sem consequências de mor monta. Desconhecemos felizmente o porvir quase todo. Constantes & recorrentes balancetes da vida nos contabilizamos. Nem sempre dão resto-zero – no mais como no menos positivo. A quotidianidade entorpece-nos – talvez felizmente também. Rasgos da consciência do absurdo de tudo isto (dentro como derredor) podem febricitar-nos a disposição.
    Nem bem nem muito mal me correu o ano que hoje cronogramamente finda – tão-só correu. Não alcancei a equívoca glória literária, por cujo merecimento aliás não pugnei q.b. Visitei muito um Irmão doente, almocei duas vezes com a minha Leonor, versejei muito a minha coitadinh’orfandade. Revisitei em constante (mas ilusória, auto-ilusória?) novidade a minha Cidade. E li menos livros do que precisava.
    O erotismo industrializado não me arranhou: paulatina mas seguramente, venho assexuando-me sem remorsos nem poluções-nocturnas nem gritarias-mudas nem remédio. A Beleza deixou de ter mamas, para mim. As raparigas a quem observatório ainda presto – têm todas mais décadas do que as que, a mim como a elas, restam de vida.
    Não há-de ser hoje que releia, partes sequer, deste Parnada Idemuno. Quando puder (mas é despesa…), imprimirei a versão dáctilo-composta a que fui procedendo para publicação em blog (www.canildodaniel.blogspot.com). Talvez então releia/recupere alguns instantes de tantos dias, afinal tão poucos.
    Meros minutos (onze) passados do meio-dia, está calor. É anormalidade devinda normal – que abomino: tal como abomino quaisquer ditaduras. Não hei (não hemos) qualquer hipótese de retorno às 4-estações-4 com que antanhamente cada ano se mostrava & demonstrava. Não julgo porém muitos os anos que tenha de subditar-me a este escândalo climático.
    Um cãozito branco de clarões pêlo-dourados vai patitando o patamar-varanda que dá ao Mondego & a Santa Clara vist’aberta. Delicioso quadrúpede ínfimo! A cauda enrolada em perfeito ponto-de-interrogação, a que o exposto ânus dá o ponto perfeito! Vai ele farejando mijos rivais na vegetação disponível. Bonito & pequenino como um gesto de boa-fé, desses gestos que de vez em quando urdimos por hipócrita histriónica caricatura de nós-mesmos.
    Como ontem, em diálogo-que-não-monólogo com o meu máximo Amigo JoaKing Jorge Carvalho (filho de Delfina & José), reitero-me hoje certa quase-inveja por quantas pessoas são capazes de desprendimento – não só funebremente a Amados-Mortos, como a Imperiosamente Amáveis-Vivos.
    Tirante isto tudo (o tudo ’té-’ora-escrito), retenhamos:
    Manuel António Pina (1943-2012), cujos papéis vivem;
    António Osório (1933-2021), cuja Mãe é escrita;
    Ruy Belo (1933-1978), demasiado cedo para tão tarde de mais;
    Rui ex-Benedito-pós-Daniel (1951-2020), além-Atlântico & sem-aquém.
    Este rol não obsta a outros obituários.
    Pleno de tais ando eu em vida, enquanto ando.
    Os de minha criação são já pujantes & vários:
    & adversários do que quero a quem amo.
    Há dias, um pai & seu rapazito brincavam:
    hoje também, que é o mesmo o local.
    É de serigrafia, a mesmidão total
    da mimosa cena que tal assim travam.
    Retomo lembrança de uns quantos lidos
    (Nicolas Freeling, William Golding, Raul Brandão)
    + de uns quantos não esquecidos
    (Sófocles, Eurípides & o Zé Vilhena maganão).
    Não cheguei a partilhar com um meu leitor certa fotografia representando para sempre em casa de meus Pais (vivos então), a minha mocidade de 1975 (ou 1976?) irmanada por um cavalheiro de maior importância. Qualquer coisa atrapalhou essa partilha ou transmissão: talvez o facto de eu, nem em política, me submeter a qualquer ideo-religião. Na fotografia em ca(u)sa, somos ambos moços: eu, muito (onze ou doze anos de nascido); ele, alguma coisa (62 ou 63). Em tal imagem (supremo orgulho non-vanitas-sed-vanitas) de meu senhor meu Pai, Álvaro Barreirinhas Cunhal posa em hombridade. Recordo ter sido servido, não menos que por ele, de bacalhau-à-Brás, que afanosamente a minha Mãe cozinhou sem auxílio de sovietização nem cirílica culinária. Lá vai. A foto representa dois mortos: um por ex-nascimento, outro em linha-disso.
    A agitação de 1383-85 mereceu a Álvaro Cunhal um livro admirável (e por mim admirado – pois que o li, foda-se!). Também Joel Serrão & António Sérgio aljubarrotaram propósitos. O meu corpo é hoje tão dessa leitura quão de outras que houveram (cuidado com o houveram quando não sinónimo de tiveram) de obrigar-me a mais & mais & mais-outra-alguma-coisa.


FIM



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