Laurentina
de Jesus Cravo Mercedes, correspondente postal de Túlio Serafim d’Anes Galo. É
ela a manicura da Alameda (Bairro dos Actores, Lx.).
Laurentina
é pessoa positiva. Não a afecta nem infecta, como não a aquenta nem arrefenta, a comprovada transitoriedade da existência terrestre. Ela está
noutra – e a outra mete nirvanas & reiki não ao barulho mas ao
silêncio-zen. Não come bichos, só erva. Merdita, perdão, medita muito – pensar,
pensa pouco.
As
cartas de Laurentina divertem Túlio. Hoje, quinta-13-do-I, chegou uma. As patranhas bem-intencionadas de sempre:
vegetarianismo & seus milagres, bondade dos chás de tudo que seque na eira até
levitar como os anões. E pormenores da correspondência que mantém com um guru
das máfias pseudonepaltibetanas que a partir de Braga expede cursos por
correspondência do tipo grande-mestre-esplendor-garantido.
E
Túlio sente-se menos só, e menos meio-vã a sua casa, lendo Laurentina: se temos
todos de ser infelizes, que alegremente o sejamos, carago. Namasté!
Quinta-feira, 13 de Janeiro de 2022
Claro
que quem prefere o inverno não dorme na rua.
Os
deserdados que dormem na rua não bucolizam.
Serão
livres – mas não da liberdade de que precisam.
Esta
parece mansa verdade pura, nua & crua.
Nós
(os por enquanto com paredes, soalho & tecto) pairamos.
Passamos
pela existência, sim, enjauladamente.
Labuta-se,
dorme-se, é-se estatística gente.
Mas,
parece, pouco aprendemos. E o que sim, não ensinamos.
Vivemos
– mas em prosa rabiscada à pressa.
Ao
contrário do passado, qualquer futuro é a termo.
Digo,
redigo, pito e repito: o meu Santo chama-se Eça
–
naturalmente o de Queiroz, esse divino estafermo.
Não
seria, não é, não será agora que, à cautela,
me
meterei a fazer carreira – de rico, por exemplo.
Prefiro,
da literatura, a alteridade em espaço & tempo.
O
resto? É comer-lhe-&-beber-lhe, D.ª Graziela.
Pessoas
em sala-de-espera hospitalar. Começa a tarde de Sexta-14-do-I. Comigo, 25.
Ninguém de livro em mãos. Smartphones com fartura: 14 estão online. Este
é um tempo de artistas, perdão, autistas ligados à nuvem (nefelibatas
sem a mínima ideia de que seja nefelibata).
Mais
gente jovem do que seria expectável. A sala mostra-se limpa. As batas da
enfermagem, alvas. Todos estamos mascarados: esta chinesice veio para ficar.
Um
calmeirão careca digita afanosamente o telelé. Mochila preta nos costados, sapatos-de-vela,
formato, envergadura & cor corporais que me recordam o vocalista do grupo
The Christians.
Uma
mulher de grenha loura-coiffeur de blusão sangue-de-boi, blusa azul cravejada
a diamantes de plástico, sapatilhas cor-de-rosa, mamas murchas como chorões de
beira-rio.
Entre
seus pais, um rapazito como já fui. Cabelo preto, apartado à esquerda por risca
nítida. Boné escarlateando Benfica. Talvez nove, se calhar dez anos.
De
azul-pervinca, uma moçoila alta, botins de camurça cor-de-baba-de-camelo, um
bocadinho escarpada de ancas mas perfeitamente comestível à mesma, não seja por
isso.
Algumas
velhotas, também. Uma, de gorro lanígero debruado daquele
roxo-à-Senhor-dos-Passos; outra, de amplo casacão em pano caro, não sei o nome
têxtil mas dá para ver que foi de dinheirão; outr’outra, de carteira grená a
tiracolo como uma cartucheira de remédios; aind’outra, de pergaminhada pele que
os anos (muitos) sulcam, aram, lavram & apalavram.
A
minha senha chama-se G019. Estou em jejum desde madrugada, já o bandulho
me ladra indignado. Vão sangrar-me, mandar o humor para análise, vampirismo bem-intencionado
a que me sujeito porque pois-que-remédio.
Fora,
a tarde é clara como o ovo. Apetece passear sem rumo pela idade, perdão,
Cidade, colhendo à passagem a passagem mesma. Penso que me não demorarão muito.
Trabalhei toda a manhã – e com proveito, pelo que, passeando na hora vesperal, me
não acode nem ocorre razão de remorso. Já agora, aqui darei conta dessa
ambulação: pois que também tal é civilmente registável.
Um-pobre-de-deus-passeando-pela-brisa-da-tarde (*) - 24
Sexta-feira, 14 de Janeiro de 2022
[(*) Escusado é, ou deveria ser, licenciar-se uma pessoa em, por exemplo, engenharia-hidráulica, para de ponto perceber que o título trocadilha tributo ao belo livro de Mário de Carvalho – mas pronto: o título desta entrada brinca com Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, do A. cit.]
Saído a passeio pela tarde iluminada & fresca (máx. 14, mín. 5), isto é de cuspir para o lado e seguir em frente – na hora presente como nas que vierem, se vierem. A luz favorece boas gravuras de paleta: bem melhor do que em .pdf. Sob certo viaduto de que em outros registos hei feito & dado já talvez farto assento, pernoita uma mulher cujos marido & filhos estão presos lá em cima na Penitenciária. Dizem-me que ali acampou há três dias – mas tem de sair até segunda-feira-17-do-corrente o mais tardar, por razão de nesse dia começarem no local obras de “construção das infraestruturas do troço urbano entre o Alto de São João e a Portagem”, afectando, para remodelação parcial, a Rua Tomé Rodrigues Sobral e a Praça 25 de Abril. Prevê-se uma primeira fase que dure três meses. Tudo em ão:
“Renovação do sistema de drenagem de águas pluviais e residuais; renovação da rede de iluminação pública; remodelação de passeios; remodelação da zona da rede viária.”
Passea’mbula’ando, faço por botar mente fora o povo dos meus sonhos, essa esparsa multidão que me atroa as sonhadorias. A noite passada mesmo, sonhei com alguém a propósito de discos de Paul Simon. Esquecer isso.
Relvado que os melros debicam, manhã muito cedo. Há uma dúzia de anos que por ali migo & esmifro pão a seu benefício. Hoje não foi o caso. Hoje, o caso foi de estraçalhar duas fatias de pão-de-forma em proveito de duas pombas no flanco da Associação Académica. Encheram os papitos. Eram bonitas, ambas mais a dar-lhe para um cinza-claro de tabaco-louro depois de fumado.
Deixo por ora as minhas micções, perdão, ficções. À hora presente, basta-me bem por companhia a sombra mesma. A minha, digo. Nem de imaginação careço: suficienta-se-me a profusão de figuras, azulejos, algum raro cão vadio ou perdido, realejos sem macaco, macacos sem realejo, pontes à distância & distâncias sem travessia possível. Marcho em frente – seja em frente do que for, desde que atrás de ninguém. Não sei de mim (nem de quem seja ou não for) pela noite que se acerca. Talvez me afrancese: umas quantas páginas de Proust, outras tantas de Camus. Não há-de ser serão complicado.
Por enquanto, um maduro pré-podre de chapéu-à-marialva. É de paleio-cliché: irritar-me-ia se eu lhe desse troco. Não dou. Passa-se isto em um antro afinal benigno do Calhabé, perto de ali onde passava a automotora da linha da Lousã. É daqueles velhos que deixam crescer o cabelo para trás para parecerem beethovens ou léos-ferrés ou pintores ou gentes-dessas-de-prestígio-pré-internet. Não, o dito não me irrita. É, como eu, apenas outro sandeu(s). De momento, tasquinha tremoços, admirável rilhar de próteses-dentuças.
Também Coimbra é pasto de gaivotas. As mais remediadas andam ao Mondego; as mais indigentes, ao lixo. Vi, ora mesmo, duas – e não estou perto do rio.
Como tais aves, as pessoas. Não todas, naturalmente. As não-todas? Falcões, umas. Milhafres, data delas. Abutres, avonde. Pardais sem Deus? Mas que livro – e de quem – lêdes?
Sigo. Dizem que o falcão-peregrino atinge os 400 km/h em pico de voo-stuka-descendente. Acredito – mas nunca vi. Outras coisas vi, em alternativa viva: e que posso passar a descrever.
(d)Escrevendo:
Certo serviço de louça pintada a rox’azul na Nazaré
Geada no mondeguino Bolão sobre musgo natalício
Quadros pintados a sós pelo meu Irmão Zé
& demais beleza sem esforço ou sacrifício.
Outro rol de coisas que acabam deteriorando o meu asseio, perdão, passeio:
Isso de mudares de amante como quem nem de camisa
Mais isso de a insuficiência mental odiar a gramática
E ainda isto de a pré-concepção ser sistemática
E o dar-se a quem já tem & não a quem precisa.
Talvez mais surja o fito, se reformulando:
Queres ir comigo à Biblioteca Joanina?
Ou ir ver o Anselmo (que, não tarda, morre?)
Ou queres uma dose da minha insulina,
desta que pica-pica até que não sobre?
Sobre púrpuro fundo, a nau retornante
vem d’ouro-brasil & d’índia-canela.
Não te esqueças q’hoje são o zanos da Nela:
traz o pão-de-ló & o arroto-espumante.
Ou então (mas com recrudescente amargura):
Ai ó meu rico Pai d’águas & pedras
Ai minha rica Mãe de nascimento
A vida afinal tem bem mais merdas
Q’aquelas à hora do nascimento.
Vejo entretanto uma pessoa desfalecida/perturbada:
Ninguém vai querer crer no que ela passa
Chalaça atirada e malperdida
A pessoa é de borla & vem de graça
Grassa por aí merdura fementida.
O meu passeio-prosa (ainda) não é de todo perdido: abanquei assento-nalgas em tugúrio azulejado com balcão-inox: não o Rodrigo do anão Jongbloed da estufa no Bolão, mas coiso perto d’afim. Entra um angolano autoengraçado, incapaz como tal de baixar as tónicas & de altear as mudas. Ele é autoengraçado. E usa gorro lanígero à guisa daquela velhota da sala-de-espera, sim, mas este, em vez de à-Senhor-dos-Passos, cor-de-cagalhão-em-fila-de-espera-para-vala-que-não-há.
Preciso de ser mais preciso: mas sem excessiva concisão ou demasiado laconismo – far-me-ia tal incorrer em meiose, pecado que, fora a microbiologia, é venal-gramatical. (Tenho uma gramática-de-menino-1978 que me o garante, agora que a recuperei de caixotes pós-divórcios.)
(...)
1 comentário:
Hoje tenho para o serão.
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