© DA.
Outras enumerações - 27
Salvaguarda de lucidez autoprotectora face ao caos íntimo.
Sem-abrigo pelas cidades de uma nação ex-pátria.
O verso-finalmente-justo de um escaninho ínfimo.
Mas, mesmo botado à rua, não ser um ’tadinho nem um pária.
Brigadas voluntariosas ofertam sopa pela noite.
As estações ferroviárias, varridas a vento glacial.
Nostalgia de lareira, uma pouca de pão, um fio de azeite.
E a glória munificente da Língua de Portugal.
Ainda pela rua perpassam frades & freiras.
Existem silenciosamente, dormem sobre pedra.
Eles & elas lá sabem se sofrem de frieiras.
Mas dali não arredam, nenhum deles arreda.
Uma volta pela praça apreciando os bens:
peixe de metálica rutilância (luar que nadava),
fruta das terras mais perfumadas de al aléns,
mulheres gerindo o mundo & que o mundo não trava.
Olhos fatigados, não têm conto por as ruas ásperas.
Envelhecimentos instantâneos por as repartições.
A ferrugem ataca muito as nêsperas.
E as bocas são ósseas, dão-se a tropeções.
Em glória a matina vai-se aguarelando.
Por enquanto vivemos, aproveitemos o enquanto.
Só tu já não dizes que me estimas tanto
quanto eu te estimo, ó Marília Rolando.
Rolando - 28
Marília Pedro de Canais Rolando funciona das nove às dezassete na guarita dos serviços municipalizados (transportes públicos). Tem os filhos (menino & menina) criados. O rapaz fez engenharia-mecânica, a donzela foi para enfermeira de geriatria. O ex-marido de Marília é bancário a ano & ½ da aposentação. Está tudo bem. O segredo bem guardado dela é um namorado que tem em Santa Clara. Tão bem guardado, que aqui vai o nome completo dele: Armando Janeiro Porto Acabado.
Eu, houve tempos em que gostei de Marília Rolando – mas ela era casada (e bem, na altura), séria, digna, louvável, louvada & lavada. O meu pé-de-alferes deu por isso em nada. Corrijo: em quase-nada, pois que ainda nos relacionámos horizontalmente umas quatro vezes. Este facto d’entre-lençóis volveu-se despiciendo: era um amor sem porvir aproveitável nem pretérito histórico (ou vice-versa).
Armando Janeiro é duas coisas: 1) boa escolha de Marília; 2) meu Amigo de há mui longos anos. Foi por conseguinte algo timidamente que ele, um destes dias, me abordou. Sabendo que eu a namorara em casada, Armando quis ter de mim a garantia de sigilo, primeiro, e, depois, anuência. Eu anuí. Só não posso ser sigiloso porque ando disfarçado de contador-literatóide.
(Faço ora parágrafo entreparentético por causa do seguinte: talvez eu esteja fundindo & confundindo Marília com outras mulheres que a minha vida, até biblicamente, conheceu. É uma espécie de bruma. Se alguma vez deveras amei – o que se chama amar: francamente, não me lembro. Lembrei-me hoje de registar Marília Pedro de Canais Rolando por causa de ter renovado o passe-bus para Fevereiro na guarita dela.)
Marília, pois.
Ainda bonita.
Já não somos dois.
Ainda catita.
Olhos tão clarinhos.
Boca apetitosa.
É clone de rosa
com muitos espinhos.
Tem-na agora Armando.
Eu é que não tenho.
Choro baba & ranho?
Vou-me assoando.
Não mais o futuro.
Não menos passado.
Sinto-me impuro
& ultrapassado.
Passo (in)certidões.
Quero emolumentos.
Faço averbamentos
& declarações.
Sem mal eu querendo,
a bem da lembrança,
desfiz-lhe a trança
na cama tremendo.
’nha bela Marília
de olhos turvados,
ora alheia ex-minha
de anos acabados.
Armando Acabado
acabou vencendo.
E eu, bem lhe(s) querendo,
boto-me de lado.
(Que lado nem é,
antes retaguarda.
Capitão não sou,
sequer uso farda.)
Paixão é cegueira,
é deficiência.
É impaciência,
não é brincadeira.
Já para o mês que vem,
busco outra guarita
a que tal bonita
me não perca bem.
Deixo estas endechas,
penhor de lembrança:
desfiz-lhe a trança
em suaves mechas.
Acabado - 29
Ao cabo de um dia mais ou menos trabalhoso, Armando Janeiro Porto Acabado repousa um pouco em inclinação oblíqua sobre almofadões propícios. Passa na pantalha um documentário dedicado à figura de um homem que foi, em pessoa, irritante, mas, em obra, digno de alguma atenção. (E não, Armando não diz dele o nome.) Outras imagens:
um vale em que encontram pasto rebanhos mansos;
casas de pedra muito antiga(s) vicejando sombras atiradas ao chão;
desenhos feitos por artistas esquecidos sem retorno;
flores & ramos pisados em chão de procissão;
revoadas de alados a favor de um vento azulíneo;
uma actriz de cravo ao peito dizendo sílabas frescas;
um par de professores eméritos conversando sem legendas;
Atenas-a-Mui-Antiga-&-Toda-Inicial;
multidões em festa (não sabe Armando por que raio);
uma estrada alagada com choupos por sentinelas;
anjos de gesso guardando um portão de quinta;
fachada monumental de fábrica conserveira de pescado;
tricanas de postal hepaticamente amarelecidas;
quintal crivado de gatos famélicos mas solares;
rosto de homem improvavelmente nascido;
rapaz atirando pedras ao lago na falda de montanha nevada;
metrópole brutal, desumanista, sobrevalorizada, atraente.
São quase entretanto as seis da tarde. Armando, que mora na Mendes dos Remédios, não sai hoje. Fica-se em casa, serão com sopa & pão de anteontem, de momento é suficiente. Não é instante de apogeu-civilização. É tão-só o serão solitário de um solitário em recato. Talvez Marília lhe telefone, talvez ele telefone a Marília. É só Quarta-19-do-I. Alhures, alguém se dá ao trabalho de morrer; outros alguéns, à insensatez perdoável de nascer. Há muito de quem faça alguma coisa. Armando vai à cozinha, espreme duas laranjas, junta água-mineral, bebe meio copo de pé, retorna ao quarto com o restante. Mais imagens:
Cairo, sol cru como pano branco, gente aos tiros;
tumultos noutro cu-de-judas afim do Cairo;
pânico (eufórico) de circunstantes do regicídio (1908);
euforia (pânica) idem-idem (1914);
cave-jazz-fumo-whisky-coca-curtição-sombra;
galerias comerciais: vidraças, manequins, marcas, lixívia;
maometanos de olhar oblíquo sentados em muro baixo;
cristãos que não olham apinhados no metro;
calendários-de-parede amontoados a um canto da oficina;
uma fulana insuportável que se diz jornalista;
flashes de guerras repetíveis, ocasião chegada;
uma fotografia aérea do santuário da Cova da Iria;
Sylvia Kristel, Armando não sabe se em Paris ou Praga;
Linda Lovelace, Armando não sabe se em New York ou Guimarães;
Adolf Hitler perorando à sua Jugend;
crianças etíopes sem pão, sem água & sem idade;
cão dormindo a meio da escadaria universitária.
Nota: deste segundo rol de dezassete imagens, Armando Janeiro terá, quando muito, entrevisto três ou quatro, mais não. Abatem-se-lhe de doçura as pálpebras, dormita sem remorsos contra os almofadões, a mente resvala-lhe para um vórtice alternativo. É quando o telefone se põe a guinchar. É Marília? Não é Marília. É uma voz tentando vender-lhe um plano articulado de seguros (vida/casa/carro). Desliga com cortesia firme. Já não readormece.
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