20/01/2022

REGISTOS CIVIS - 27 a 29

© DA.



Outras enumerações - 27


Salvaguarda de lucidez autoprotectora face ao caos íntimo.
Sem-abrigo pelas cidades de uma nação ex-pátria.
O verso-finalmente-justo de um escaninho ínfimo.
Mas, mesmo botado à rua, não ser um ’tadinho nem um pária.

Brigadas voluntariosas ofertam sopa pela noite.
As estações ferroviárias, varridas a vento glacial.
Nostalgia de lareira, uma pouca de pão, um fio de azeite.
E a glória munificente da Língua de Portugal.

Ainda pela rua perpassam frades & freiras.
Existem silenciosamente, dormem sobre pedra.
Eles & elas lá sabem se sofrem de frieiras.
Mas dali não arredam, nenhum deles arreda.

Uma volta pela praça apreciando os bens:
peixe de metálica rutilância (luar que nadava),
fruta das terras mais perfumadas de al aléns,
mulheres gerindo o mundo & que o mundo não trava.

Olhos fatigados, não têm conto por as ruas ásperas.
Envelhecimentos instantâneos por as repartições.
A ferrugem ataca muito as nêsperas.
E as bocas são ósseas, dão-se a tropeções.

Em glória a matina vai-se aguarelando.
Por enquanto vivemos, aproveitemos o enquanto.
Só tu já não dizes que me estimas tanto
quanto eu te estimo, ó Marília Rolando.

Rolando - 28


    Marília Pedro de Canais Rolando funciona das nove às dezassete na guarita dos serviços municipalizados (transportes públicos). Tem os filhos (menino & menina) criados. O rapaz fez engenharia-mecânica, a donzela foi para enfermeira de geriatria. O ex-marido de Marília é bancário a ano & ½ da aposentação. Está tudo bem. O segredo bem guardado dela é um namorado que tem em Santa Clara. Tão bem guardado, que aqui vai o nome completo dele: Armando Janeiro Porto Acabado.
    Eu, houve tempos em que gostei de Marília Rolando – mas ela era casada (e bem, na altura), séria, digna, louvável, louvada & lavada. O meu pé-de-alferes deu por isso em nada. Corrijo: em quase-nada, pois que ainda nos relacionámos horizontalmente umas quatro vezes. Este facto d’entre-lençóis volveu-se despiciendo: era um amor sem porvir aproveitável nem pretérito histórico (ou vice-versa).
    Armando Janeiro é duas coisas: 1) boa escolha de Marília; 2) meu Amigo de há mui longos anos. Foi por conseguinte algo timidamente que ele, um destes dias, me abordou. Sabendo que eu a namorara em casada, Armando quis ter de mim a garantia de sigilo, primeiro, e, depois, anuência. Eu anuí. Só não posso ser sigiloso porque ando disfarçado de contador-literatóide.
    (Faço ora parágrafo entreparentético por causa do seguinte: talvez eu esteja fundindo & confundindo Marília com outras mulheres que a minha vida, até biblicamente, conheceu. É uma espécie de bruma. Se alguma vez deveras amei – o que se chama amar: francamente, não me lembro. Lembrei-me hoje de registar Marília Pedro de Canais Rolando por causa de ter renovado o passe-bus para Fevereiro na guarita dela.)
    Marília, pois.
    Ainda bonita.
    Já não somos dois.
    Ainda catita.
    Olhos tão clarinhos.
    Boca apetitosa.
    É clone de rosa
    com muitos espinhos.
    Tem-na agora Armando.
    Eu é que não tenho.
    Choro baba & ranho?
    Vou-me assoando.
    Não mais o futuro.
    Não menos passado.
    Sinto-me impuro
    & ultrapassado.
    Passo (in)certidões.
    Quero emolumentos.
    Faço averbamentos
    & declarações.
    Sem mal eu querendo,
    a bem da lembrança,
    desfiz-lhe a trança
    na cama tremendo.
    ’nha bela Marília
    de olhos turvados,
    ora alheia ex-minha
    de anos acabados.
    Armando Acabado
    acabou vencendo.
    E eu, bem lhe(s) querendo,
    boto-me de lado.
    (Que lado nem é,
    antes retaguarda.
    Capitão não sou,
    sequer uso farda.)
    Paixão é cegueira,
    é deficiência.
    É impaciência,
    não é brincadeira.
    Já para o mês que vem,
    busco outra guarita
    a que tal bonita
    me não perca bem.
    Deixo estas endechas,
    penhor de lembrança:
    desfiz-lhe a trança
    em suaves mechas.

Acabado - 29


    Ao cabo de um dia mais ou menos trabalhoso, Armando Janeiro Porto Acabado repousa um pouco em inclinação oblíqua sobre almofadões propícios. Passa na pantalha um documentário dedicado à figura de um homem que foi, em pessoa, irritante, mas, em obra, digno de alguma atenção. (E não, Armando não diz dele o nome.) Outras imagens:
    um vale em que encontram pasto rebanhos mansos;
    casas de pedra muito antiga(s) vicejando sombras atiradas ao chão;
    desenhos feitos por artistas esquecidos sem retorno;
    flores & ramos pisados em chão de procissão;
    revoadas de alados a favor de um vento azulíneo;
    uma actriz de cravo ao peito dizendo sílabas frescas;
    um par de professores eméritos conversando sem legendas;
    Atenas-a-Mui-Antiga-&-Toda-Inicial;
    multidões em festa (não sabe Armando por que raio);
    uma estrada alagada com choupos por sentinelas;
    anjos de gesso guardando um portão de quinta;
    fachada monumental de fábrica conserveira de pescado;
    tricanas de postal hepaticamente amarelecidas;
    quintal crivado de gatos famélicos mas solares;
    rosto de homem improvavelmente nascido;
    rapaz atirando pedras ao lago na falda de montanha nevada;
    metrópole brutal, desumanista, sobrevalorizada, atraente.
    São quase entretanto as seis da tarde. Armando, que mora na Mendes dos Remédios, não sai hoje. Fica-se em casa, serão com sopa & pão de anteontem, de momento é suficiente. Não é instante de apogeu-civilização. É tão-só o serão solitário de um solitário em recato. Talvez Marília lhe telefone, talvez ele telefone a Marília. É só Quarta-19-do-I. Alhures, alguém se dá ao trabalho de morrer; outros alguéns, à insensatez perdoável de nascer. Há muito de quem faça alguma coisa. Armando vai à cozinha, espreme duas laranjas, junta água-mineral, bebe meio copo de pé, retorna ao quarto com o restante. Mais imagens:
    Cairo, sol cru como pano branco, gente aos tiros;
    tumultos noutro cu-de-judas afim do Cairo;
    pânico (eufórico) de circunstantes do regicídio (1908);
    euforia (pânica) idem-idem (1914);
    cave-jazz-fumo-whisky-coca-curtição-sombra;
    galerias comerciais: vidraças, manequins, marcas, lixívia;
    maometanos de olhar oblíquo sentados em muro baixo;
    cristãos que não olham apinhados no metro;
    calendários-de-parede amontoados a um canto da oficina;
    uma fulana insuportável que se diz jornalista;
    flashes de guerras repetíveis, ocasião chegada;
    uma fotografia aérea do santuário da Cova da Iria;
    Sylvia Kristel, Armando não sabe se em Paris ou Praga;
    Linda Lovelace, Armando não sabe se em New York ou Guimarães;
    Adolf Hitler perorando à sua Jugend;
    crianças etíopes sem pão, sem água & sem idade;
    cão dormindo a meio da escadaria universitária.
    Nota: deste segundo rol de dezassete imagens, Armando Janeiro terá, quando muito, entrevisto três ou quatro, mais não. Abatem-se-lhe de doçura as pálpebras, dormita sem remorsos contra os almofadões, a mente resvala-lhe para um vórtice alternativo. É quando o telefone se põe a guinchar. É Marília? Não é Marília. É uma voz tentando vender-lhe um plano articulado de seguros (vida/casa/carro). Desliga com cortesia firme. Já não readormece.



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Canzoada Assaltante