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Leitor – 37
Falta chuva. O Sol não tem faltado à chamado do galo. Os dias são bonitos, sim – mas a chuva faz muita falta. Talvez irremediavelmente já, o planeta está meteorologicamente doente, muito doente. A conta do hospital ser-nos-á & sair-nos-á muito cara. Este ponto não é despiciendo.
A alternativa é seguir apreciando os pilares do temp(l)o: Proust, Kafka, Joyce, Beckett, Pessoa – por aí. Há sempre alguma novidade, decorrente, claro, da pujança do vero classicismo.
Atido a casa por necessidade & obrigação, o Leitor dá de si anotando minuciosamente os trechos à vista. Abstrusa, a actualidade desinteressa-o. Trilhos & sendas anteriores parecem-lhe mais municiados de provisões para o futuro possível.
Os acontecimentos deveras grandes não têm hoje imitação. Assim pensa, isso sente assaz. Outrora, em era de mais amigos disponíveis, certa sedosa condição existencial não era rara. Já não conta ou pode importar, havendo que pacificar-se por dentro uma pessoa.
Nobreza - não de sangue mas de carácter.
Repugnância indefectível pelo onanismo moral.
Perigo da misantropia: presente não-irreal.
Quanto ao resto (os restos), há que ter
curiais cuidados tendentes à autopreservação.
É (de) ir deixando o pensamento à rédea mais ou menos solta. Em confinamento físico, abrir-lhe uma janela, deixá-lo voar por asas próprias. (Autoalienação, dizeis? O Leitor discorda. Antes isto: autodeterminação.)
Antes apreciar como aproveita a tarde este moço-homem. Vai ao museu depois de almoçar na casa-de-pasto de que é regular comensal. Às quatro da tarde, saciado de pintura, volta às ruas. Flamulando, ei-lo que flana pela urbe. Até que se faça noite, pertencem-lhe as horas abertas. Velas no rio: regata de amadores. Famílias no jardim-parque: clãs em sincronia. Esparsos pescadores à linha de beira-rio. Mas falta chuva. Faz muito falta, a chuva. Represas & barragens de nível perigosamente baixo. Agricultura & pecuária em precária dependência. Janeiro segue fresco mas enxuto de mais. Ele assim considera, entrando na pastelaria. Manda chá & torradas com manteiga. Sim, deram já as cinco. O ar do estabelecimento é cálido, soporífero, agasalhador. Não se demora muito. De novo ao ar-livre, vai entre árvores. Certa frialdade invasiva, intrusiva, viva & vivaz. Isto pode ser narrado de quanto alternativo modo apetecer. Vem, como vai, do pensamento.
Que crime nenhum desordene a paz jurídico-social.
Que dos factos a verdade material seja lavadamente apurada.
Que a justiça se realize pelo livro, depois, & pela pessoa, antes.
Que o Estado não viole da pessoa o direito inviolável.
Então – e Kafka? Pois é. O Processo kafkiano é menos fictício do que pode pensar-se. Um périplo de Franz K. por sua tarde em sua Praga. O exílio diferente de James J. por certa Europa. A depuração do absurdo à Samuel B. Fernando P.: pessoa-colectiva. A autoclausura de Marcel P. Por aí, em dédalo.
Noite, que muito não faltas já: bem-vinda.
Cumprida a tarefa do dia, algumas páginas ainda.
À varanda, um cigarro fumado em paz pessoal.
Tanto faz como desfaz, sem alarido nem escândalo.
Intimamente, nada obsta (nihil obstat) a que a pessoa (e.g., o Leitor) julgue de/por si mesma: mais ou menos independente, mais ou menos imparcial, mais ou menos alheia ao conflito, mais ou menos passiva quanto à produção de prova – é dos livros.
Pelas ruas, por casa, com memórias mais livrescas já do que conjunturais. Desinteresse da/pela contemporaneidade. Predomínio da vertente estética. Demanda, em beleza, da Beleza. Outra coisa bonita é saúde para toda a gente – mas já se sabe que não acontece, não pode ser, há que ir renovando a frota pelo abate de navios.
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