07/01/2022

REGISTOS CIVIS - 2

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Borges - 2

2.ª-Feira, 3 de Janeiro de 2022


    O homem que minava metal escarafunchando o contentor de lixo sito ali ao alto da Estação Velha: António Maria da Ventura Borges. Valha a verdade: não precisa de andar à escória para sobreviver acima de bem. Foi durante 36 anos escriturário da PSP, goza de uma reforma jeitosa, não precisava. Mas anda. Outra verdade: com o que recebe do sucateiro Rogério Eliseu de Pinho David, compõe mais do que bem o ramo de suas contas mensais. E sempre se entretém, em vez de estar em casa a coçá-los e a ouvir o bestunto à mulher. Começou ao lixo como quem não quer a coisa – e agora não quer outra coisa. Descarna os cabos eléctricos, o cobre é do que dá mais ao quilo.
    Não se peça a este homem, nem dele se espere, qualquer alusão ao versilibrismo modernista, à endoscopia invasiva, à técnica esfumante de Leonardo ou à safra espumante de Anadia: o homem não lê, o homem não vai ao médico, o homem não é de meias-tintas, o homem não bebe. A mulher dele é que é uma porra: desde que engraçou com os jeovás, ninguém pode sofrê-la. O casal dorme em catres separados desde, para aí, 1981. Quem a conhece, sabe que não são muitos anos.
    Na segunda-feira, 3 de Janeiro, António Maria entrega ferragens velhas a Rogério Eliseu. Embolsa 27 euros al contado. À vinda, compra dose e meia de frango assado com batatas fritas na churrasqueira Ildemiro, ali à Rua do Sargento-Mor. Janta dentro da furgoneta, que estacionou a estibordo do açude. Desde 1987 que ele e a mulher não comem juntos. Quem o conhece, sabe bem que para ele é um alívio. Felizmente, não procriaram. Quando finalmente se der o apocalíptico fim-do-mundo, ela estará a salvo sem bagagem de filhos; e ele arderá na Terra até às cinzas do Inferno: pois que também a sucata é combustível.



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