27/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 677 a 680


 
677

Segunda-feira,
26 de Julho de 2021

    Mas também aqui, onde a calada da noite instaura a sua autoridade terraplenadora, sentimentos irrisórios como a vaidade, o ciúme, a soberba, o rancor, o desamor – todos se mesclam em o único pecado verdadeiramente mortal: o da perda de tempo.
    Leio em Armando Silva Carvalho (a páginas 68 do livro de que V. falei):

    “(…) poucos regressam ao presente,
    berço de todo o tempo (…)”

    E assim deveras é, pois só na poesia deveras boa, grande & única-de-si se encontra o que nem se sabia procurar-se. Na minha calada, pela minha noite, coo sentimentos oblíquos, práticas autonefastas, pensamentos mal ou nada atados – tais miligramas arrastam quilos de tempo (mal) perdido. Por me conhecer alguma coisa, não tardo a assobiar imagens para o lado menos dorido:

    A Cervejaria Nau, única luz na rua às onze da noite invernosa, os dentes das ameias do forte, o ressoar côncavo do mar sem fundo nem superfície, o mar do ar preto, rangendo o frio nas dobradiças revestidas a cartilagem neste corpo de 22 anos;

    A véspera de Julho abrindo em frente os espelhos de outra praia, esta sim eterna & sem contraponto invernal, o perfume compósito de praça, jardim, peixe, rosa, creme-nívea, figo, gelado-baunilha, feijão-verde, groselha, padaria, o vento através das pessoas, os casarões deserdados & desertados que hoje habito quando dormir se tornou imperativamente impossível.

    Nada disto é transe, nada disto é sonho. Eu digo sortilégio, não digo ilusionismo. Não sou malabar profissional. Aliás: de nada mais sou profissional que de continuar vivo. Morreu ontem um homem que de si mesmo poderia dizer: Com outros, fiz a revolução. O homem acabou, algo dessa revolução se fez duradouro. Está na liberdade com que escrevo & propago as minhas irrelevâncias, as minhas tristuras, a anedota profana da minha crendice na literatura:
    
    Mas também acolá
    etc.

678

E depois? Não digo (nunca disse) que esta via é vida só ela.
Esta: a literatura pois-agista com bestas panorâmicas ao rio.
Não, nunca. Nunquinha. Dou total dez à biologia-esparrela,
como o dou à gnose hidráulica & ao enciclopedismo-bafio,
à gripe-escaqueirante, ao cu posto adiante & à febre-amarela.

Lambo a literatura-devagarinho de passarada à vã janela.
Aprecio os largos campos, quem vai ao emprego, quem tem tio.
Mas não só a vagarosa (vaga, rosa) literaturinha-lambidela,
pois também eu idem a esmola-quântica, o esparregado-frio,
a lucidez-alucinante, ir cagar ao restaurante & a voz que s’entaramela.

A morte descarta todas as possibilidades, disse-mo alto ela.
Todas as possibilidades abertas pelo nascimento?, perguntou o tio.
Sim, todas elas – redarguiu ela, mui sábia & varicela,
muito ela-por-ela, q’ela ’inda se coça de cio,
q’ela é capaz de, mais adiante, roubar o monstro à vela.

679

De malvasia bem cheia taça emborcámos
Eu & o Tonito Pereira pelo alvor do milénio
Por toda a terna idade tal libação salvámos
Respiramos más tabaqueiras, escasseia-nos oxigénio
Casamentos na lembrança são-me só massa indistinta
Já funerais recordo bem, capaz sou de individuá-los
Como quem dá banho ao cão & alfafa aos cavalos
Arroto & m’abarroto & aljub’arroto chocos-com-tinta
Muito bajulo eu a Portuguesa Língua!
Muito eu lambeboto tal Formosa!
Creio feérica sem nódoa a rociada rosa
Já quanto à gardénia-de-lapela, distingo-a
Do fúnebre branco lírio, colírio lutuos’oftálmico
Em tratamento a banhos & a bananas tal mico
Dou rodapé de flora - & Alexandrina de Balasar
Que ainda nem beata, quão menos santa d’altar.
Quero p’r’aguardente & para a nicotina
Com copolímero de etileno
Acetato de vinilo, tereftalato de polietileno
Laminado de poliisobutileno & grão de vidro na retina.

680

Continua interessante, o patinhar na dimensão-Tempo.
Os filósofos físico-matemáticos associam Tempo a Espaço.
Eles lá sabem, muito observam, muito estudam, ponderam, trabalham.
Eu meandro-me como tenho podido: abrindo a mente.
Nascer-viver-morrer – dar Tempo (& Espaço) a outro.
Vi uma fotografia muito próxima da minha realidade:
imagem de uma das enfermarias do antigo instituto maternal.
Ali me deram nascimento também. Gostei da fotografia.
Deve ser da década anterior à minha, julgo.
Tempo daquelas mães (a imagem é escassa de infantes).
Espécie de parentesco genérico, senti isso, equalizada condição.
Aqui entra o tal Espaço: Instituto Maternal Bissaya Barreto, Coimbra.
Era à face da Porta Especiosa da Sé Velha (“Speciosa est Maria).
Ainda existe o edifício, já lá foi o Conservatório de Música.
Antigamente, passava lá muitas vezes, quando estudava.
Os infantes a-haver da fotografia andarão agora pelos sessentas.
Talvez algumas daquelas parturientes sejam vivas, oxalá.
Este tipo de imagens põe-me sempre cismático, nem muito é preciso.
Imobilizadas no papel revelado, as jacentes miram as paredes.
Uma mira o tecto; outra, menos recatada, olha a objectiva.
É muito interessante, esta dança imobilizada, este futuro acabado.
Em foto afim desta, espécie de gesso reveste o madeirame exposto ao fotógrafo.
Teve decerto autorização a rogar, não se entra ali assim com menos.
Agora, já de ali se não sai: as fotografadas foram capturadas.
Camas de ferros redondos, brancos, como que ósseos.
Roupas magras, lavadas muitas vezes, muito desinfectadas.
Nem a todas foi o amor a arrastá-las ali.
Mais a rotina, a obrigação, o dever sacromatrimonial.
Alguma solteira? Mau tempo para aventureiras.
Alguma violada? Muito provavelmente, talvez até pelo próprio pai ou irmão.
É o tipo de enfermaria que imagino à Fernando Namora.
Como no livro Domingo à Tarde, por exemplo, esse serve.
Ou, claro, nos Retalhos da Vida de um Médico.

Sem comentários:

Canzoada Assaltante