17/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 652 a 655

© Cornell Capa

652

Sábado,
17 de Julho de 2021


    Se queres, sê espartano.
    Se queres, julga-te estóico.
    Olha, vai para o catano,
    masmarro lambisgóico!
    (Pensei mas não disse.)
    No decurso do convívio de antigos-alunos do Liceu, vi-me entre rapazes de súbito mecanos, perdão, decanos. Ou de calva lustral ou de esfregona capilar toda farinh’encanecida. Mais lentos no esbracejar sublinhados retóricos, de sílabas mais emperradas, soando estas àquilo de que julgo Vos ter já escredito alguma coisa, seja: sílabas chocas como a acústica das bolas de bilhar que molemente se entrechocam. Vi-me também entre rapariga’linha’s, perdão, rapariguinhas debaixo de boiões franceses, de cabeleiras pintadas à pistola por paneleiros de marca, perdão, de laca, dengosas como avestruzes e sempre agarradas à bolsa como as crias marsupiais.
    Era, como se costuma dizer do cômputo, geral – refiro-me à resignação, à acomodação, à redesilusão, mòlhada de redivorciados & de malcasadas, já avôs & bisavós algu/ns/mas, tudo presente, como a um velório indiferente por alguém insignificante, a um ágape jurássico cujo motivo teria de ser medido a carbono-14.
    Pareço-Vos amargo? Iludis-Vos. Adoro ir ao reencontro anual de Liceais da minha geração. Apareço invariavelmente principesco, invariavelmente Poeta, poucas cãs – embora sem BMW (escondo a bicicleta nos canaviais das traseiras do restaurante & as molas das calças na pasta dos poemas). Entre aperitivos fru(s)t(r)ados de merdas novas que inventam para roubar o álcool aos bebedores-de-bem, declino sem esforço toda a minha sabença-de-experiência-feita, que é praticamente nula pois quase não saio de casa desde que a pandemia me matou a assistente social dos serviços do desemprego.
    Tomo notas mentais, não confundo ali o Miguel Arcanjo com o arcanjo Miguel das litografias, nem o sábio António José Saraiva com o caducado José António filho dele, nem a maviosa & às vezes maravilhosa Sophia com o boca-de-sapo seu filho, Miguel também e mais Sousa e ainda por cima Tavares. Dos Prado Coelho (já V. falei do Eduardito, eu sei), para mim só valia o velho Jacinto. A belida me não faz ver velida onde ela não é nem mora.
    Foi também de um dos convivas que me surgiu, qual equívoca epifania gasosa, a evidência de já não ser o pote-de-ouro que nos aguarda ao cabo do arco-íris – mas sim alguém orgulhoso de levar no cu. São os LGBTempos – e ou se alinha que-sim-senhor-que-não-senhora ou então somos homófobos e ou ajoelhamos a simbolicamente ajudar o polícia branco a estrangular o senhor de outro matiz ou então somos racistas & coiso. Esse conviva (nome fictício, por causa das merdas) era – e é – o Tó-Zé de Alpendurada (estás-me-a-levar-nos-cornos-não-tarda-nada).
    (Tive sempre tempo de ter tempo a perder. Até agora, pelo menos: tenho consulta em Agosto por causa disto do/no coração & daquilo no/do pulmão-direito.)
    Entre a Maria dos Anjos e o Carlitos Botelho, intervim & resolvi. Eles teimavam com a porcaria da “nova” ortografia (ponho aspas no “nova” por não precisar de aspas a velha… ignorância). E cois&tal. Tinham uma dúvida quanto ao “tracinho”. Olhai: se se disser vigésima primeira vez (sem hífen entre vigésima e primeira), significa-se que a primeira vez aconteceu vinte vezes. Porém, se com hífen, é a vez n.º 21 de algo ou alguém ou cois’assim. Saí de entr’ambos em pura glória & quási olor de santidade.
    Acabado o bródio (refiro-me ao ano 2019 d.C., pois no ano passado & neste corrente houve nada-para-ninguém, China rules über alles), deslabirintei-me entre os BMW ricamente estacionados na gravilha do pátio, descanaviei a minha bicla e andei por aí, feito doidinho e com um pedalar que alguém mais sagaz descreveria como “um bocadito apaneleirado”.

653

    Esguelhamente embora, certa(s) parte(s) da entrada 652 são devidas à releitura (deliciada, claro) que ando fazendo do quinto tomo de À La Recherche du Temps Perdu, mormente do segundo dos três capítulos que enformam o dito volume do opus-magnum proustiano. Trata-se, muitíssimo sinteticamente, das cenas que envolvem o rompimento dos Verdurin com o Sr. de Charlus, incluindo as perorações hipócritas & cínicas do barão sobre a homossexualidade (dos Gregos – ou até de antes deles – ao presente narrativo). Pronto, assunto arrumado.

654

    Mal-grado certas inconsistências que a lucidez autocrítica não disfarça, o (único, que eu saiba) caminho é, figuradamente, em frente. Prefiro criar a inventar. Prefiro inventar a mentir. Gosto de mentir quando estou sozinho, não quando me vejo em companhia de gente que merece pragmatismo, ordem, seriedade, honestidade, salazar, salazar, salazar. (Escrevi minusculamente de propósito; mais: escrevi a tripla enumeração itálic’onomástica do borra-botas-de-elástico-de-santa-comba-dão mas pensando, italicamente também, foda-se, foda-se, foda-se). Mas adiante, que o Pólo Sul ainda é distante (e já veremos a raiz desta flor retórica).
    A corrupção à portuguesa é um insulto a todo o cidadão deste País que não corrompa nem aceite ser corrompido. Só que o (muito) dinheiro pode muito. Daí que me não surpreenda se (espero que não, espero bem que não) as correntes montanhas processuais parirem ratos. Ratos, já as montanhas movem: levando-os a peitar a barra. Mas não me surpreenderei se o insulto devier indulto. A ver vamos, como diria o António Feliciano de Castilho ao Stevie Wonder.
    Prosseguindo o folhear do jornal, uma destas ocasiões, indo eu no autocarro para a Baixa, dei por mim pensando em orquidómetros, como quem vai rezando contas (elipsoidais, claro). O calor escanzela-me, torna-me oclusivo a comezainas, não me saúda, faz-me mal. Todavia, tinha coisas que tratar na Cidade, fui-me a elas, tratei-as – e pisguei-me de volta à choupana para me despeitar & me descuecar à mercê do cata-vento eléctrico na velocidade-2. No autocarro de volta, para azar da geral, certo velhote de opereta-bufa (é o termo, malta, é o termo) ia subrrepticiando ventosidades cúsicas, daquelas que entaramelam o falar das nalgas, selam a castanho a fralda & indispõem o resto do mundo contra o mundo dos restos. Tresandava pivete que só V. não dou a cheirar por ainda não terem inventado o braille-das-ventas. O velhote saiu ali à Casa do Sal. Estouraram gargalhadas mal sufocadas, impropérios maliciosos, insultos (sem indulto) à terceira-idade em particular & à peidorrice em geral. Já vamos na segunda metade de Julho – e foi esta, talvez, a minha segunda felicidade do ano.
    Por esta altura, perguntais-Vos, Vós a Vossas Mercês mesmas, por que me exprimo assim – ou por que faço assunto de tão rasteira (é o termo, malta, é o termo) ocorrência. Ora, se assim me exprimo – é porque posso. Não, não basta querer. Podeis crer que não.
    Chegado a outro ponto da matéria abstracta da mente-work-in-progress, tenho aqui esta nota a lápis: Temos tanto de Amundsen quanto de Scott. Um farrapo de papel caiu ao tapete quando eu esfuracava caixotes à procura de um (belíssimo) livro de Jorge de Sousa Braga: O Poeta Nu (Fenda, 1991). Encontrei, felizmente, o voluminho. Foi quando caiu ao tapete a nota alegórica (vá lá, metafórica, o caraças de qualquer figura-de-estilo que faça estalo). Mirei-a, à pobre: sozinha como um cão (ou um carteiro) à chuva, descontextuada, órfã. Tive mais pena dela que do que (des)fiz da vida. Disse-me-lhe: boto-te no Parnada Idemuno que é um mimo (mimo o botar, não o diário). E prontes, cá mora ela, a flor retórica de lá cima: botada ao pólo-sul do meu desnorte.

655

Emirja alguém de trevas rumo a novas escuridões
mas enquanto o faz o diga – e, dizendo-o,
com clareza o faça, que, merecendo-a, claridade
logo começa. Assim se faça, o mais às claras.

Dito de outra maneira, mas o mesmo talvez,
é de cada ser o ser ou não, o deixar-se disso ou o insistir
no privado existir, mesmo quando em público,
mesmo quando aos elementos exposto como a rosa.

Selvagem condição permanece adentro sem esforço,
por fora tudo é polidez, IRS prestado a tempo & horas,
viagens de era-uma-vez tem-nas muitas a cabeça,
que à noite alguém deita exausta sobre pano por lavar.

Cara feia como o lixo no chão é a de quem a não dá
à ferocidade do juízo alheio, esse covil de pandorgas
sempre tão prontos a chamar formosura ao próprio espelho,
mas quando se vai a ver é rachado que está, dá duas caras.

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Canzoada Assaltante