16/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 650 - I a VIII (com o III incompleto)

© Edvard Munch



650

Quinta-feira
15 de Julho de 2021

I

    Os julhos foram-se embora como comboios sem volta.
    Nem freixos sentinelam já o canal, esse mesmo a que vinham beber as leiras, animais horizontais povoando o deserto.
    Onde a pessoa não é, é o deserto:
    o pior deserto é porém o pessoal, aí onde se fica
    sem reflexo nem reflexão.
    Cândido diz-nos:
    – Quem janta vinho, almoça água.
    É o Povo a falar por boca-língua-dentes dele, pobre rapaz.
    Enerva-se Nilo:
    – A estupidez é a mais viçosa das ervas-daninhas.
    Mas não é contra Cândido que se enerva ele, sim contra o predomínio dos idiotas-da-turma subidos à ponte-do-navio.
    E insiste:
– A burrice é capaz de encher a oficina do sapateiro e os museus todos às segundas-feiras.
    Mas o que deveras o exaspera é cada maçã reiterar em si a condição de desdentado, não pode, há já muitos anos, morder a bela pêra-de-inverno da avoenga quinta, pois que à natural ferradura dental sucedeu a coroa acrílica – e, aos olhos, cus-de-garrafa deformando em fundo-de-poço a curvatura ex-arcoiridescente da nitidez juvenil.
    É úrgica & cirúrgica a cura do vinho pelo chá, do absinto pela tangerina espremida.
    Ai os julhos, esses desavindos connosco julhos!

II

Alberto, ó mais sozinho da família, ó mais sozinho dos homens
Não há (não hei) poema que te compense nem por aproximação
Teu caramulano vertical pedregoso afinal pessoal deserto pleno de espectros
A perna que te cortaram – ora andando, sozinha ela também
Mas por um mundo que te não é dado, a ti, andarilhar.

Tribulação inumerável por aritmética razão de singela, só o Tempo
Só o Tempo pode redimir seres a sós o tempo todo
Violáceo crepúsculo molha o teu coração encortiçado
Ao menos não eras cego, coxo sim, mas antes isso
– há-de dizer quem nunca às cegas tropeçou.

III

Os outros meses foram atirados ao Nada como palha ao vento
Confiarei que em algum lado hão-de eles poisar, incólumes ou não?
Decerto não, não é de confiar o que é, o que for, o que não
Também não importa, importa sim abordar a densa mata do a-saber
Muitas vozes me prestam atenção mesmo quando fisicamente acompanhado
Se há instrumento para tal atenção, ele é cada autocarro desta Cidade
Desta Cidade cada autocarro cheio de destinos afinal todos o mesmo
Sacos, encomendas, alegrias adolescentes cerce rasouradas em filas para tudo
Velhas senhoras clonadas de pergaminhos avoengos iguais a elas
Velhos homens quebrados como canas por joelhos que foram os meus
Carecas, gordas, modernos, clássicas, românticos, conceptistas, calças rasgadas
Agora é moda andar de roupa rasgada, antigamente era porque tinha de ser
Estrangeiros altos como palafitas lacustres lourejando a nossa morenidão
A nossa morenidão afrojudiomoçárabetc., o nosso meridional-sem-norte ó Rosa
Ainda assim fomos por aí singrando & sangrando aos mares agrestes
Querem agora remendar a História em nome das calças rasgadas
Puta que os pariu, a eles & aos que estraçalharam a ortografia
Mas, dizia
Julho & os demais meses escoaram-se enfim pelo ralo da idade
Cada dia agora é um pedaço roubado ao calendário improvável do esquecimento
Do esquecimento que cada um, tendo siso, deveria ter por certo
Atenção, isto não é negativo nem positivo, é ajuizadamente neutro apenas
Farto-me de rir de cada vez que moralizam isto, repreendem aquilo
E quem se ri, faz muito bem, o tédio é mortífero, quem tiver dentes morda
Quem não tiver, merda
O tempo foi já de outra adesão ao real, ao magnífico incompreensível real
Não o real dos megajulgamentos da corrupção, mas qual julgamento
Mas qual corrupção, isto aqui nunca foi terra disso, ou então
Ou então nunca foi de outra coisa, apontai-me lá um Português que
Um Português que se pudesse não faria o mesmo
O mesmo quê?
Ora, desenrascar-se
Ter acesso ao tacho
Chegar a sardinha à sua brasa
Gamar a sardinha do outro da brasa do outro
Deixar o outro com os pés de fora da manta
Por aí além etc.
Sempre quereria ver o que(m) me apontásseis
Mas, dizia
Era no Verão, Julho era segregado pela autoridade solar da Mãe
Íamos fazer da Figueira da Foz o paraíso na terra o éden no mar
Infinito, o ouro-areal vinha da Noruega de Buarcos e chegava à Austrália do Cabedelo
A casa em que mais ficávamos era na Rua Maestro David de Souza
Eu em pequenito teimava em enganar-me
Rua David Maestro de Souza Rua David Maestro de Souza
A dita casa ainda lá é, a Mãe é que não, o Julho é que também não
O próprio Atlântico se foi embora, talvez para as Américas
(...)

IV

    Edvard Munch (1863-1944) auto-retratou-se na companhia afectuosa de dois cães. Fê-lo aí por 1925/26. Ésquilo teve mais sorte: nascendo & morrendo circa 525 a.C. & 456 a.C., foi precisamente do cristianismo que se viu livre. Léo Ferré (1916-1993) é que soube como cantar Les Artistes. Eu faço o que & quanto posso, embora a mais me sinta obrigado.
    Cidade-Rosa é a de Claude Nougaro (1929-2004).
    Matéria dispersa, estão agora onde estavam antes de por seus pais & mães concebidos, os Artistas: matéria dispersa, devoluta, de outra organizações constituinte.
    Ferré, erva ao sol.
    Nougaro, floco de espuma.
    Ésquilo, sonho de uma arrumadora de plateias.
    Munch, uma gaivota aos gritos.
   
V

Cequim João, de Donceixe, velho maduro, pronto a ser regado.
Conversei com ele – fui mais ouvinte do que falante, na verdade.
Contou-me de suas andanças: Paris, Strasbourg, España, Coimbra.
Homem para o mundo, trabalhador tenaz, sempre ajuntou algo.
Viúvo há duas décadas, não, dezassete anos, sim, dezassete.
Duas filhas, como eu; mais velhas elas, naturalmente.
Naturalmente, porque Cequim faz 79 este ano, lá chegando.
Escutei-o como deve ser: não interrompendo, pedindo mais nas pausas.
Os anos enxugaram-no, amadeiraram-no: seco, rígido, com nós.
Prontinho para ser lume & para devir cinza – mas não hoje.
Não hoje, que se vê alvo do dardo poemático, indiscreto, este.

(VI)

(Roman’umerei as produções de hoje porque-sim.)

VII

Esses dois homens de que falámos, David & Alexandre, já não
atiram de luz desfeita & de seus corpos a sombra ao chão.

VIII

    Um Amigo disse-se-me preocupado com a corrente situação em Cuba. Mais me disse de aspectos do seu quotidiano, suas leituras, sua maneira de aproveitar o dia & a luz deste. Riquíssimo – por até ter horta a que vai buscar (mais fresca, não pode ser nem haver) a salada do almoço. A esse Amigo (que o é, com a devida maiúscula), respondi:

    Viva, Amigo.

    Não me tira tempo algum. E tenho todo o interesse (genuíno) em saber de si e do seu tempo. Claro que a situação em Cuba me preocupa também. É dos derradeiros redutos onde a utopia ainda floresce. Não sei como, não sei quanto mais. Os monstros moram perto: e este que lá está agora (USA, claro) é apenas menos burro do que o outro. Não é menos mau: é norte-amer(d)icano na mesma. Todavia, a internetização devora tudo. Cortando-lhes o direito ao pão, não faltará quem lhes faça parecer de borla a manteiga. Enfim, a ver.
    Quanto à leitura que me faz, agradeço-lha muito. Escrever não é martírio nem caminho-andado para santidade alguma. É uma coisa solitária, sim, mas assim não é sozinha.

    Grande abraço do,


Parnada Idemuno


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