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Quarta-feira
14 de Julho de 2021
Por mais leituras feitas, por mais escritas praticadas – morre-se analfabeto. Talvez por isso os ignorantes creiam tanto na vida-eterna: para eles é mera continuidade, trivial mais-do-mesmo. É escusado tagantá-los a preceito nos lombos: podem ser eles a ter razão.
Tagantá-los? Significa chicoteá-los, azorragá-los, zurzi-los, vergastá-los, afiambrá-los, paudemarmeleirá-los. Só posso fruir o léxico – e tudo o resto – enquanto vivo. Como ontem à noite era o meu caso, podeis (já podeis, pois que me tendes acompanhado, só este ano, por 641 + 1 ocasiões) facilmente perceber a minha alegria ao dar de viseira nestas gemas: tagana, fataça, mugem, liça & tagarra – tudo sinónimos de tainha (o peixe). Tainha que é também alhures chamada – corveu (ou corvéu), galhofa, garrento, mugueira, negrão. Caramba: rica de sinónimos como espinhas, tal nadadora. É, convenhamos, de debacar analfabetos.
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Esta é a minha veniaga, outra não tenho, posso ou quero. Não a quero, sequer posso ou terei por incompta, grosseira, rude, sem finura. (Disse-a veniaga – e é-o, mas não sei mercadejá-la, não sei. Escrevivo de borla, com ou sem remédio, é conforme não sei o quê.) Enfim: que não seja, prosa ou poesia, mera alografia.
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Aqui muito perto, descida a ladeira quási rectilínea que une o meu promontório à avenida, dormem homens ao relento sob a via-rápida assente em pilares maciços como a miséria. Vejo-os amiúde. Documentam eles as maravilhas-do-progresso. Partilham algo de lixo & anjo ao tempo mesmo. O que (des)fazem, e como, e desde quando – não sei. Valem-me de espelho, mais vezes até do que é confortável pensar. Por isso, passo já à entrada seguinte.
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Fake-news: “Bolsonaro internado com obstrução intestinal”.
Facto-vero: “Bolsonaro É a obstrução intestinal”.
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Edinburgh, ano antigo. Uma Rua de Santa Maria. Bares com pista circular de dança. Uma noite fria, muito depois de Arthur ter vindo estudar Medicina, mesmo muito depois. Fria & escura, a noite nova na velha cidade. E a tragédia golpeia, jovens desaparecidas, nenhuma sensata esperança. Duas mortes por & para nada. A história exigiria um escritor mais seco, mais árido, menos dado a ornatos barrocos – não me pede, pois, autoria.
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Pedra-de-toque dos meus dias
A luz mede também o poço
Do que vejo, do que não & do que ouço
À sombra mesma das noites frias
Frias por dentro algumas vezes
Por fora em brasa agressiva
Matéria da memória viva
Doçuras candentes, pessoas soezes.
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Tivemos o 25 de Abril, somos livres.
Isto no geral. Já no aspecto particular, não é bem assim. Na verdade, pessoa nenhuma é – ou está – livre: do coice de uma besta.
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Descaroável série de sociopsicopatas.
Muita dessa merda-bípede no mundo.
Tomai uma: Angus Sinclair, fideputa.
Não há, mas deveria haver Inferno.
O de Dante não basta.
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