© DA.
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Domingo,
4 de Julho de 2021
Casa abandonada até por os fantasmas
Sobretudo por dentre estes os mais medíocres
Em ti durmo pela anestesiada imaginação
Tantos anos ardidos mas em ti eu durmo
Não é como nos filmes com (d)efeitos-especiais
Na parede da sala, a lápis, as nossas alturas
Próprias hoje de anões, não de gigantes
Que será feito desse lápis nessa mão desfeita, não sei
Alhures embora há tanto, em ti durmo. E convoco-os,
chamo-os na penumbra-lunar-poeira-roseira-nespereira.
Tanto ou mais custa desfazer uma casa que fazê-la
Atirá-la ao chão como a pugilista decadente
Como a casebre de cartas sem naipe de trunfo
Não tive jamais a mínima hipótese ou alternativa
Não temo nem tremo, mas doer – dói-me a sério
Quero que acabe em mim a genealogia sorumbática
Não quero que às Filhas passe e as limite em curso
Troco por papéis lapijados a minha altura mesma
Não é de anão, não é de gigante, vem nos livros
Os livros que posso & passo, sem ergofobia alguma.
Jamais leito algum meu foi de novo tão populoso
Tão povoado de novo quanto o meu em a meninice
Isto do Tempo é uma insidiosa relojoaria:
Há horas, tive uma infância
Há anos, tenho uma velhice
Não tem a ver com ponteiros
Tem a ver com algo inominável
Mas inominável só enquanto eu não
Enquanto eu não aprender a escrever
Aprender a escrever mesmo muito bem, a sério.
Vamos por uma metáfora simples & botânica:
Digamos que a minha & a V.ª poesia(s) são arbustos
Compreendido? Arbustos murando-nos a casa
Então, a poesia de Fernando Pessoa é o luso Gerez
Então, a poesia de Fernando Pessoa é a teutónica Floresta Negra
Então, a poesia de Fernando Pessoa é as florestas todas do Canadá
Então, a poesia de Fernando Pessoa é a Amazónia
A desproporção é essa, caros amigos – e nada pouca
Entramos numa idade finalmente fétida sem embuços
Cheira-nos o peido a frang’assado, o mijo a medicamentos.
Tudo isto é muito menos trágico do que parecer possa
Bem miradas as coisas, chega a ser cómico ter nascido
Um homem & uma mulher aflitos de amor geram-nos
E depois dizem-nos: – Fizemos a nossa parte, fazei ora a vossa –
E nós a anuir, a aquiescer, a deferir & a não-entender
Viemos de França na cegonha, viemos toyotamente para ficar
E o erro não é total porque deveras eterna é a infância
O problema está em deixarmo-nos seduzir
Deixarmo-nos seduzir como as árvores, sim como as árvores:
também elas crescem – e afinal são para abate.
São para abate se não arderem antes, presas dos loucos
Os loucos que ateiam fogos para curtir o espectáculo
O me(r)diático espectáculo da sofreguidão noticiária
Os repórteres-no terreno atropelando a gramática
Os basbaques-mirones feitos récuas asininas
Mas pronto, tudo bem & nos conformes, é deixar arder
Vai-se para a esplanada mais bem assombrada
Emborca-se um almude de cervejola, uma arroba de salgadinhos
A-vida-dois-dias-o-carnaval-três-&-quatro-os-ases-do-baralho
Sim, almocei hoje frang’assado & tomei os remédios à risca.
De abandonada casa porém V. dizia eu tristuras
E no entanto ela foi viva, gerou-criou-atirou vidas
Ríamo-nos muito no quarto às escuras
A infracção fazia-nos rir, os Velhotes queriam sossego
A Lua tomava então o espectro, lá fora ao pó a roseira
No pombal as pombas, na casota o cão, em nós a condição
A humana-condição-à-condição, isto não é para sempre
Tenho dois Irmãos mortos, Pai & Mãe também, os quatro Avós
Mas vá que sobrinhos-netos vão já rompendo futuro
Não sejas lamechas, Daniel, põe-te a fancos da tristeza.
Fotografei a casa evacuada até de fantasmas
Há muito não lhe passo já em face
Distraio-me como posso, assobio versos para o lado
Publiquei a primeira composição aos treze anos
Vi logo ali que sim, era por ali o caminho
Tenho hoje 57 & nada mais tenho feito
Nada mais do que recompor a composição primeva
A qual, justamente porque primeva
Assim começa: Quando chegou a Primavera
Já o único texto publicado da minha Mãe era sobre O Outono.
Agora o mais engraçado é, indo eu de autocarro
Entre as pessoas-sacos-de-compras-problemas-certidões-consultas-adiadas
Ir cismando na casa pobre de mais até para sustentar fantasmas
Essa casa mesma que foi um Taj Mahal
Essa casa mesma que foi todo um Versailles
Essa casa mesma que foi o farol no promontório de Sagres
Essa casa mesma que era, por assim dizer, quem éramos: anti-órfãos
Sendo hoje portanto nada, ninguém & nenhures
Mas para mim tudo, todos – & em tudo qualquer lad’alhures.
Assim seja & se cumpra, que eu não duro sempre.
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Pessoas ambulam, nem todas boas, nem todas más.
Todas são interessantes, vai da atenção adequada.
Falo dos vivos – mas também digo coisas aos mortos.
Eles respondem sempre quando sei fingir que respondem.
Casas pontuam panos de terra gerações’trás’gerações.
Sem os registos civil, predial & poético, nada restaria delas.
Esta madrugada mesma, revisitei a minha, que em ruínas é.
Na próxima madrugada, lá estarei – aqui porém aboletado.
Haydn (este sim, era Zé) soa na tarde em recolhimento.
Entre as 15 & as 18, recolhi-me aos cavernames.
Aproveitei pois o Tempo no limiar vida-morte-son(h)o.
Haydn, agora – Debussy depois, diverso vento, praia mesma.
Steinway & Sons a dourado sobre negro, parece fácil até.
Händel, seja bem-vindo a este imodesto casebre meu.
Não é dia hoje de mores expansões do que as curiais.
Jim Morrison fez ontem 50 anos de morto.
Como Marat, morto na banheira, é o que dizem.
A Música no-los reserva vivos, assim o estejamos nós.
Ulano Daneca Lémure Loriga, professor de Álgebra na Escola Sidónio Paes & cruzadista de top & frequentador do Café Arcádia, ali à Ferreira Borges, que-deus-tem. Era sósia quási-perfeito do Oliveira Martins de 70/XX. Outros conimbricenses sósias de celebridades: o alto Capela, que era a cara-chapada do guarda-redes académico & belenense Manuel Maria Nogueira Capela; Carlos Eduardo Malita Sottomayor, do Príncipe de Gales (ainda em vigor); Sétimo José Ventura Veneno, Einstein sem-tirar-nem-pôr; Hernando Ingote Santos Rolando, outro Cesariny mas ginófilo; Alberto Fernandes Vilaça Alvarim, novo & renovado Vladimir Ilich Ulianov, vulgo Lenin; Mário Victor Juliano Couraça, perfeito Bill Evans (coca & heroa inclusive); & outros, de que V. irei dando rol quando m’alembrar.
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Figuras bem vestidas, asseadamente ataviadas em um tempo de estações exactas a ponto de intransigentes. Não digo muito mais por não saber muito mais. Disponho, isso sim, de gravuras-móveis sem continuidade coerente ou sequer fiável. Alguns nomes, algumas cicatrizes, não muito mais.
No arquivo-geral, fichas das famílias: Cerqueira, sapateiros; Silvestre, magarefes; Escola, dançarinos; Mirtilo, solicitadores.
Nas arrumações da gare-do-norte, volumes nunca-reclamados continentes de toda uma parafernália maravilhosa: facas, pijamas, guarda-jóias, próteses, ex-votos, anzóis, jarros, a cabeça mumificada de alguma mãe-de-família envenenada pelo cônjuge adúltero com a conavência, perdão, conivência da amante, um exemplar da primeira-edição de Clepsydra, uma galinha suíça capaz de cacarejar relógios-de-chocolate, uma torre-eiffel em prata, a asa ou de uma cegonha ou de um anjo ou de ambos-em-um (coisa de que há muito suspeito).
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