14/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 637 a 641

© DA.



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Segunda-feira
12 de Julho de 2021

    Imagens de há meio-século. Jovens de então expressando desejos artísticos que, seus, querem tornar viáveis a outros. Ainda o 25 de Abril não acontecera. Cinquenta anos volvidos, são vivos alguns. Filmados a trabalhar, a depor, a fazer-em-frente. Reconheço um. É de obra-feita. Este género de imaginário tem sempre a minha atenção. Vejo. Revejo. Noto. Anoto. Conheço. Reconheço. O meu País (ainda) tem validez humana. A maioria não alcança reconhecimento – aplauso ainda menos, gratidão ainda menos que aplauso.

638

    José Macedo Galopes Mosteiro, com vivenda beira-fluvial. De & por suas mãos fez a cobertura do terraço à face do salgueiral. Ajudei-o na empresa como servente-de-obra & achegador-de-materiais. Concluída a coisa, o espaço tornou-se um reduto por que perpassava em fio o frémito feliz do sossego. A meio da tarde, o Sol deixava de agredir o recinto, subindo do rio a sombra líquida. Vinha de dentro o jarro de limonada muito verde, muito ácida, muito apedrejada de gelo. Conversávamos, fumando cada um seu lento cubano. Aí lhe contei alguns parágrafos ainda por escrever & por prescrever. O seguinte foi um deles:

    Em uma encruzilhada do subúrbio nordeste, um estabelecimento de refeições-ligeiras com serviço de esplanada. Marcou-me ali encontro a professora Isabel Maria Osório Amaral. Era para uma entrega, dela a mim, de provas tipográficas para revisão integral & final – tese de doutoramento sobre o crédito rural no limiar do século XX português. Muito interessante (achei eu porque sonhava). Apercebi-me da presença de Itália Maria Lagar Novas, à minha esquerda e atrás, sob a latada de gardénias infiltradas de cravos. Estava com o marido, duas amigas & uma pequenina. Não nos falámos – não por voluntária descortesia mútua, isso não, mas porque ela nunca me viu nos dezoito minutos de película onírica. E quem diz os dezoito minutos – diz o mesmo de toda a vida até então, essa de nos casarmos cada um por seu lado.

    José M.G.M. achou-muita-gracinha-achou ao meu devaneio de adormecido. Disse ele também tê-los – mas com feéricas desconhecidas, dessas sem telegrama de vinda nem verbete de adeus-foi-quase-um-prazer.

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Terça-feira
13 de Julho de 2021

    Há menos invenção do que podeis talvez julgar no que acumulo em papel riscanhado – a meu ver, é mais jogo de criação/recriação/recreação o que aqui (se) passa. Exemplo: também a Eduardo Mateus Monda Norton contei farrapos de sonhos que dormevivi. E até lhe disse – em franco aparato de verdade – que já detestei sonhar, mas que ora nem tanto. Aquele, contado a Mosteiro, das/com as senhoras Isabel & Itália – sim, vividormi-o em uma espécie de êxtase anestesiado, por assim dizer. Ou narcomesmerizado, palavrão capaz de dizer (d)a minha condição estatutária no enred’onírico em causa.
    Eduardo, que é atento como é atencioso, disse-me dormir muito – sempre que pode – mas sonhar pouquíssimo. Nem ele nem eu atribuímos qualquer valor ominoso, profético ou coiso aos sonhos. Sabemo-los clarões da mente a menos de meio-gás, tão-só. Nada de jung-freudismos-de-quinquilharia para senhoras malcasadas e/ou poetas-de-croquete.

640

    O pensamento pensa-se a si mesmo.
    Parece-me admirável maravilha.
    Não me interessa a auto-sentimentalidade.
    A mentalidade importa; a sentimentalidade, nem sempre.
    Penso o pensamento por adentraforatravés.
    A pessoa existe nesse processo-em-pessoa.
    E nessa fronteiriça interacção constante com o além-corpo.
    O próprio riscanhar no papel: interior em ideia, externo em consequência.
    Deixar que muito entre em troca pelo muito que sai.
    O Carlos Celeste na choupana, sua base agrícola de todo(s) o(s) ano(s).
   Encontrei-o à porta da churrasqueira, gracejámos um pouco, gostámos de revermo-nos. Falámos de outros anos, de como vão as saúdes de gente nossa afim.
    Houve ali perto um armazém de gás, outro de conservas alimentares. Morou ao lado um canteiro com mulher, três filhos & uma filha. O matadouro. A camionagem. A fiação. O aviário. A cantaria. A escola. O pavilhão. A ladeira que sobe à casa de um réprobo. A escola para cegos. O tanque no bosquete, o bosquete, a passagem-de-nível.
    A enumeração precedente não é, toda-ela, exterior-em-si: é pensamento, é(-me) íntima – por vir & ser palavrosamente.
    Cá está: palavrosa mente.

641

Cada dia, em cada elemento, busca & quietação irmanam-se.
Como indivíduo, abarco finalmente a escassez & a libertação.
O que poderia ter sido – deixou de ser tema sequer de minuto.
Não tenho Verdurins que frequentar – nem desejo de.
Diminuto há-de tornar-se o não já imenso mundo.
A imundície impera sob a pátina, o esterco no sabugo envernizado.
O extremismo climático tem os seus colabora’nega’cionistas.
Não sei (ainda) que seja ter netos – mas receio já por eles.
Há por enquanto remédio: visitar & revisitar tesouros.
São estes de diversidade magna, é bastante a variedade rica.

Ainda que mínima, qualquer comunicação efectiva é preci(o)sa.
Patinha-se no éter, como aquando se era adentro a placenta.
Dessa solidão visceral há talvez sulcos de sombra no adormecido.
Como ir à Holanda sabendo-se lá esperado por algo & alguém.
(Sim, a imagem do verso anterior não carece de nitidez maior.)
Ou: como saber & praticar matemática, latim, botânica, carpintaria.
Ou então: saber & praticar algo & alguém.
Cada noite, entregamos o corpo ao desconhecido amanhã.
Ninguém sai ileso de cada véspera sua.
Na África do Sul, saques & morticínios: humor-negro, ao que dizem.



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Canzoada Assaltante