08/06/2010

Últimos Dias do Caderno Chinês (VII - fecho)

VII – TRÊS DIAS DE CÃO EM UMA VIDA IDEM



Pombal, 5 de Maio de 2010



Dez da manhã.



A sombra divide aquelas duas casas.



Os olhos desta mulher falam sozinhos.



Uma máquina vermelha: sentir saudades.



A cabeça é insuficiente no mundo bastante.



O sol olha, o sol molha, o sol m’olha.



Falo com homens na praça. Través as frases, sinto lateral o rumor das árvores. Elas sempre assim foram, nós homens não. Consigo pensar nomes ao mesmo tempo que cores. Saio do meu coração para abrir uma fonte – ou uma carta. Isto não significa. As mulheres presidindo a bancas de tremoços. Fantasmas de carroças carregadas de carvão: as leituras. A minha Mãe vai morrer – e as Vossas, meus senhores? Quanta beleza, quão terrível beleza, a deste mundo. A minha vida com uma camisa azul. A força brutal das viaturas. Eu era para fazer casas, desfazê-las é porém quanto escrevo. Às vezes, estou sempre no Inverno. Outras, cuido do mar como os antigos de hortas. Faz falta ser feliz por segundos. Nenhuma tara subjaz ao meu gosto por olhos feminis e por maduras mãos masculinas. Agora já não inverto aquele pinhal. Olha a mulher-da-erva, olha a noitinha infestada de lírios, de tranças de menina, de bebedores sós como cães – ou como versos. Isto será um dia a minha força. Ao sol, uma vez em Antuzede, o meu Pai vivo falando com homens, ele a sentir ao mesmo tempo cores nas frases, tenho quatro anos. A minha boca doente quando ouço. Poder dormir quando se pensa numa ponte. As pessoas desconcertadas ante a beleza descomunal das minhas Filhas. Uma vez, em Viseu, gatos pequeninos como miniaturas da Pobreza Católica. Os ventres das mulheres espadanando leite. As máquinas vermelhas sentindo: cabeças humanas. Sê bem-vinda à minha esquina mental. Aqui, a esta esquina, é tudo antes da morte e depois da vida. Arquétipos: Hercule Poirot, D. Quixote, o senhor Sacramento, a Maria. Olhos que não conheço: lendo isto. Isto não significa, isto é além. Vidas em França pensando Portugal. Portugal é a minha terra-limite. Estava eu a ser moço quando o Tempo me atacou todo de repente. Quando compreendi um verso. Faces como capas de livros. Livros semelhantes a pessoas. Um perfil de gazela, as letras-esquilos, a floração (não, a fundura) púbica dos bosques. Alfredo Marceneiro numa Lisboa a preto-e-branco. A Dor: a Vida. Ainda assim, a Beleza. Os passitos cuneiformes das gaivotas pela areia do Baleal. Nós agora, ainda. Continuo a falar com homens na praça, o Sol de cada um deles, o rumor das árvores refrescando as frases, as cores. Ritual e camisa azul. Esta carta por abrir. Uma fonte voejada a pássaros, a ourivesaria sistemática das laranjeiras, a força fulva, flava, do Outono. Calado, sem dinheiro, assistindo ao fragor da espuma no farol. Não ter sido marinheiro. O coração das meninas ciganas batendo fogueiras. Ter frio, procurar o lume de um verso justo como um santo. Instrução para sempre: sendo menino, abrir uma romã e compreender rubis. Tenho irmãos no mundo: este é o meu Corpo. A raposa como uma labareda. A flecha erótica zunindo em bancos traseiros. Parado ante o Pavia, o Arunca, o Mondego, o Tejo. Na Figueira da Foz, à tardinha, depois do Café da Pernambucana, entre taxistas, meretrizes, bancários e republicanos. Uma vez, ante um pianista e um piano. Um vestido azul ao vento de comboios. Os livros que não pude. Em Leiria, certa ocasião, os filhos do senhor Salvador do Restaurante Monte Carlo. Tu amas-me. Se olharmos com atenção, as cabeleiras são sistemas de algas. Verde, verde: matas de jade. Rubro, rubro: bosques de esmeralda. Se esmigalhássemos o coração, obteríamos quartzo e vozes. Mansidão do Adormecido: mas dormir ainda me dói. Isto vai ser Coimbra-B, Buenos Aires nunca/nunca/nunca/mais. Clarões brancos de roupa estendida: e infâncias encerradas em quartos verdes. A minha Avó materna ria-se com lágrimas, a outra não sei porque não posso saber tudo antes de nascer de vez. Ruas: Nicolau Chanterene, Moçambique, Vasco da Gama, da Amargura. Sistema mais praticado da Vida Nacional: olhar os outros sem os ver. As máquinas voadoras: mais olhos. Sentado em umas escadas de prédio, atendo o telefone: e que ouço, uma voz, um pretérito, um rosa digital e/ou um convite para jantar sem ser só pão? Um homem tinha um filho muito doente – e depois o Pai Natal foi ao circo. Ter um saco de pano para pão mas repleto de esmeraldas, atirá-las todas ao Arunca menos uma, esta é para ti. Estipêndio e vilipêndio. A face amolgada de tristeza: que terá acontecido a esta mulher, a este cão? Sim, a minha Mãe urinando-se sem continência, sozinha na sala, os livros todos de Júlio Diniz em frente, atrás tudo o que volta à mente dela, as sinapses desligando-se mais e mais, o rumor das árvores emaranhando as frases, as cores, as dores. Em menino, no Monte, olhando as formigas: sendo Deus, portanto, um deus-menino. Funcho, trevo, urze, giesta, hortelã, espargo, o meu Pai vivo para a pintura, o cheiro a febre infantil dos remédios na cabeceira, o médico ao domicilio, Edmondo de Amicis, Mark Twain, R. L. Stevenson e o Pai Tomás na Cabana da senhora Harriet Beecher Stowe. Depois, o clarão de um verso, o fervilhar do plâncton, a areia toda sideral entre os dedos dos pés, os Filhos e as Filhas dos meus Irmãos e da minha Irmã. Estes homens tão cegos, mas os olhos desta mulher. A saliva adocicada: beijando uma gata. A monção, o favónio zefirando a pele, través a ponte, voando um rio. No Caramulo, entre os fantasmas da tuberculose, pelo Parque urdindo Camilo Ardenas. Em Lisboa, sozinho no Metro, sem perceber a noite que se me fechava como os serões das casas ricas. Assomos de ascética dignidade, no Rossio, nas Portas de Santo Antão, na Prior Coutinho, no Largo do Andaluz. Não poder fazer isto mais simples. Em Pombal, no Louriçal, urdindo Cristalino Vicente, sozinho em Leiria com uma saca de pano para pão repleta de livros e sem pão. Gostar de ortografia como outros, de motores. Conheço um marinheiro, um único. Acho pouco. Só que às vezes acontece-me remediar o mal-de-pensar com excelente prosápia de balcão de bebedouro nocturno. A senhora Saudade, o senhor Gabriel, os senhores Adelino C. e Adelino L. Uma noite num café-com-livros ante pessoas gentis que se perguntam em silêncio coisas a que não sei responder porque ainda não nasci na morte. Olha, um polícia fardado de pombo. Mais um pouco, um pouco mais só – e teremos sido amanhã. Tenho este amor todo nas mãos, mas os braços caem-me. A lavanda da Finlândia é odorífera na Cultura Geral. Os casamentos das pessoas, as andorinhas de barro nos pórticos dos casais, o Irmão Doutor Sousa Martins e Axel Munthe. Ter sido amanhã um anjo terminado. Uma profusão de morangos, uma mulher nua querendo-te, o quartilho de água mineral povoado de invisíveis mergulhadores que respiram bolhas de banda desenhada. Ah sim – e a Música. A Música e o Sol e a Chuva e a Churrasqueira do Cardal. Coisas deste mundo: as dores de dentes, o funeral do Pai do Joaquim Jorge (outra vez Antuzede ao sol mas já não tenho quatro anos), no bar das bombas da Redinha, Peniche forever, a prosa alemã e a poesia espanhola, passar aço na cara para poda da barba, um pouco de água nos olhos vinda de dentro. Magia de dizer lótus, dizer opala, dizer safira, dizer terracota. E dizer assim: crianças são como maçãs. Tempo de frescura na Casa-de-Pasto Cardigo, ocasião para repensar o urdume narrativo da minha vida-agora, escolhendo não saciar por antecipação a morte, pensando Vila Real de Trás-os-Montes, Tavira, Penamacor, Setúbal. O Professor Bambo das astrologias africanas, a rarefacção psicológica das divorciadas que o consultam, a minha vida há cinco anos em Viseu, a Lameira do Saramago de outrora é hoje Rua 1º de Maio na minha terra, para quê, para quem. O Nada – profundamente. A vilegiatura, sabática por assim dizer, dos adoradores do Astro-Rei, uma espécie de Egipto portátil em vez de coração. O César fazendo-me rir, o Casal de Fernão João, a louriçalense Fonte do Areal, o esvaziamento governamental da suposta Democracia, as referências mesmo assim guardadas hialurgicamente na memória activa, digo: Salgueiro Maia, Che Guevara, Julio Cortázar, o professor António Marques. Às vezes, entre comedores de grelos aferventados e pescada cozida, ponho-me a ler o Correio da Manhã como se nunca houvera lido Thomas Mann ou Mercè Rodoreda. E não tem importância. Digo um adeus cortês ao Zé Manel da Chave Verde, no outro dia até cumprimentei o Abel, que era quem servia à mesa no Restaurante Verde Gaio. Tudo passa, embora nem tudo se possa. (Esta é a minha mente a trabalhar.) O Tó Pereira algo acabrunhado, o Toninho Varela nas mãos voluntárias da Música, o Gènito das Finanças que colecciona os livros da Vampiro, devo duzentos euros de IRS não sei por alma de quem, convidaram-me para escrever um livro  e é o que estou a fazer na manhã aliás gloriosa de 5 de Maio de 2010. O João Pedro tem uma filha em França, chama-se Ana. Aquele homem come uma maçã de casca encarnada. Às cinco e meia da tarde tenho um trabalho sentado para fazer, o que serei na vida depois é que de momento não sei dizer. Coisas que no ent(ret)anto sei: Jorge de Sena é um gigante; o sabor dos frangos da Pérola é diferente dos do Rei; Leonor e Teresa são os melhores nomes portugueses para filhas portuguesas; até a corrupção autárquica é pobrezinha-graças-a-Deus; a música de Bach muda as glândulas de lugar a uma pessoa, caraças; o homem da maçã de casca encarnada está a fazer barulhos de chupar os interstícios dos dentes sem se chatear com nada nem ninguém; os agentes da PSP Escola Segura parecem mesmo periquitos, enquanto os de giro pedestre são totalmente pombos; António Osório é o mais fino poeta português vivo; as azeitonas doem na infância; perder uma mulher é perder a sério sem segunda volta; o ensino de Língua-Pátria deveria voltar a ser de facto ensino; o João Henriques Marques sabe da poda tabeliã; as minhas sobrinhas aturdem o mundo por causa da beleza invencível que as enforma; Nuno Bragança é outro gigante, idem Dinis Machado; as cegonhas do Louriçal e o que sonhas no Louriçal; as emoções aglutinam possibilidades versilibristas; uma ocasião, chorei à chuva ante uma casa cor-de-rosa; o João Faria é o protótipo do Louco Feliz; há versos de Sá de Miranda que uma pessoa, sinceramente, senta-se e sente-se; de Camões, então, ainda muito mais, caramba e carago; posso finalmente escrever quase tudo para ser quase nada. De repente, é uma e meia da tarde. Vou falar de um amor.



Era a minha vida vestida de outra pessoa – era portanto o amor. Eu tinha sentido o carácter cancerígeno da solidão, mas a outra pessoa aparecera, nada restaria de pé como antes. Assim foi. Vibrei como um junco de lago sobre que pousa o pássaro do entardecer. Despi-me. Comecei pelos olhos. Eu coleccionava máquinas encarnadas como maçãs (ou sãs crianças). Até me acontecia ser um formoso rapaz, o castanho português dos olhos encimando bem o carmim da boca, o pescoço taurino, as mãos visitadoras de pergaminhos. Era sob a nespereira do pátio. Ela era uma rapariga e uma mulher e uma senhora ao mesmo tempo. Reproduzia, mexendo-se, a ginástica da rosa que a brisa toca de volúpia. Eu era uma camisa azul. O meu nome era Inverno. O nome dela era Rosa-do-Inverno. Correram, águas sob ponte, alguns dias. As noites trituravam lâmpadas diamantinas – e a Lua uivava como as mães dos lobos. Quase não escrevia, esse eu de então. Comovia-nos a visão dos gatos pobres, o rótulo de champanhe dos peitos das freiras, a visão diáfana dos pinhais do litoral, a natureza aurífera do riso, tudo nos comovia em ademanes de encontrados uma-ao-outro. Se tínhamos dinheiro, comprávamos um bolo e comíamo-lo a meias passeando pela cidade poderosa das chapelarias, dos videoclubes, dos chafarizes, dos polícias columbófilos, das crianças emanadas do amor lácteo dos outros. (Que a minha mente funda mulheres, não é por mal.) Depois, eu tinha um duro trabalho de amontoador de pedras. Passava o dia e os dias naquilo: amontoava pedras, chegava à noite com as mãos cheias de estrofes. Éramos quem ia nascer amanhã. Também éramos os morituros, todos e todas o são.



15h43m, deixa lá o amor e dele as tessituras. O Magno Sol torna tudo o que é ar esplanadas. Cristopher Walken em cine: visão rápida cruzando montras-passeios. Fulgor e febre. Vendedores de carnes-frias. Contacto. Luís e Américo, um de cada vez na rua em cada rua. Enciclopedismo e rapid-eye-movement. Periferia melancólica e bares forrados a madeira como bibliotecas de cristal. Uma cara: rosa-grená. Outra cara: flor-do-chá. As pessoas todas na antemão do Céu como balões e foguetórios em Verão de romaria. A pobreza delas: e a poesia delas. O rasto húmido de cães numa viela de navalhofadistas. Celorico da Beira em 1978. O Zé dos Poios, a necessidade de estudo dele. Os divórcios, o dia depois de tudo ser antes. O senhor Bloom e o senhor Joyce serem agora o(s) mesmo(s). Esta coisa estranha no coração: a filiopaternidade: ou seja: afagares a face de uma filha como quando filho eras e foste. A Miss Marple sincretizava o Mundo a partir da Aldeia. Um elmo de barbeiro para D. Quixote e um rosário de lágrimas & fodas para D. Inez de Castro. Morreram deveras as crianças nascidas (por exemplo) em 1383? Herculano, A., comendo queijo e peras no tugúrio do pastor – foi Alexandre deveras: e H.? Ah, eu não sei! E Correia Garção? E Martim Codax? Leonardo Di Caprio, em outra fugaz (gás, gás) montra de telelectrodomésticos. E o moço que de nome houve Cesário Verde – e o senhor que além de Camilo, que não Ardenas, foi Pessanha. Tanta, tão terrível tenebrosa (treva, rosa) Beleza, caramba-carago! Ou o senhor Chico & a senhora Rosa dos Foitos de outra minha vida. Às vezes, eu vinha do meu dia de amontoar pedras e sentava-me nos degraus da marquise a comer um pêssego. A vida assentava-me na fadiga como um inventário de Junho. E então eu não precisava de nada, só da minha criança correndo a casa como o bolor e/ou como a felicidade. Ruas: dos Bombeiros Voluntários, do Mancha-Pé, dos Navegadores, do Dr. Custódio Freire. Ou da Cidade de Saragoça, ou de Guerra Junqueiro, ou da Manutenção Militar, ou das Convertidas. Ou das Teorias de Conspiração. Ou dos Cravos Amanhecidos. Ou de Yukio Mishima Kawabata de Yourcenar. Pan Am e Varig. Lufthansa e Luftwaffe. This is not a smoking pipe. O meu Pai dizia que um fato pobre baseado em bons sapatos parecia melhor fato do que de verdade era. Percebo isso agora: um bom livro calça um mau homem. Tento. São Sebastião crivado de flechas. O João da Bininha. A filha mais nova do senhor Veríssimo. O filho mais novo do nosso primo Mário Chato. A permilagem, doença estatística mor do salazarismo. Mas: os cães da minha de todos infância, a correcção volumétrica deles no meu de todos pátio primevo: desenhos que respiravam, pinturas que comiam, esculturas que ladravam, peças de música com carraças gordíssimas tais ervilhas em amarelo. E ter pena de morrer não ser tanta pena como a pena de nos morrerem? E a vida alternativa das bebedoras de chá sobre peanhas-conas de sessenta anos ou mais até? Uma vez, falei com a minha cunhada Gracita. Ela disse-me “Lembro-me de ser muito cedo, eu e a minha Mãe.” Eu fiquei com aquilo. Depois, algumas coisas bateram na pátina das casas, era pela Arregaça, a vida não parecia tão rica como de facto é – ou talvez seja. Isto passa, eu entretanto tenho uma dor de dentes gravíssima em Janeiro de 1985, pego num alicate ferrugento e parto o dente ao tentar sacá-lo. Diferente disto é Pierre Nordon biógrafo de Sir Arthur Conan Doyle, criador de Jeremy Brett, perdão!, de Sherlock Holmes. O Gitó e o Godinho interrompem isto, mas o guarda-redes do Celtic morto com um pontapé na cabeça, mas o Caso Profumo por causa daquela puta tão boa, mas enfim. De resto, a redenção que, entre árvores e homens e frases e cores e rumores, espero ainda. Soeiro Pereira Gomes? Ferreira de Castro? Quiñones? Serrat? Tudo. Todos. Vita Brevis. A Revolta do Grelo, digo, Coimbra-1902? A função dos tribunais, a coimbrinhice medonha e reles da mediocridade, Molly & Molloy, os mauzões de Chicago do meu defuncionado Amigo Guilherme Pais, George Michael & Filomena Daniel, os azulejos azuis do Bar de Direito, as meninas em flor que euforizam por segundos quem as vê passar. O resto do meu livro e o rosto da minha vida. O Zé Alvim e a mulher. O Tó Mota fatigado de tanto trabalho, tanta hora. O Max da Madeira, tão bom músicactor. A div(in)Amália. Trabalho às cinco e meia desta tarde mesma, depois o quê, com quem. Espero a noite – e a noite espera-me. Rasto de pó, circuitos comerciais, Samba Pa Ti, o Verão de 1978, o Verão de 1987, isto dos números serem mais do que letras. Penso ter ido em o mesmo 1978 ao cinema do Colégio de S. Teotónio. The Song Remains the Same etc. e John Bonham ainda era vivo. Era tudo tão mais fácil. O latim tem seis declinações correspondentes a outros tantos casos sintácticos. O vocativo de Senhor é importante por ser o vocativo do sacristão, isto: Dominus, Domine. Outra coisa é a Tristeza Residente: a saudade diária das filhas que os ex-casamentos apartam, as pizzerias, as montras como jóias terminais da noite das noites do século dos séculos, os enfermos grisalhos do Instituto de Oncologia, o João e a São Pinto. Na Emídio Navarro, muito antigamente, foi num Primeiro de Maio, eu e o Tó-Mané Abreu entrámos na Cervejaria da Fábrica. Aquilo estava concorridíssimo. Voemos canecas e adentrámos tremoços. Pedimos a conta. O empregado não foi resoluto, mandou-nos aliás, com alguma aspereza, esperar. Olhámos um para o outro sem sintaxes nem morfologias. Viemo embora-nos. Sem pagar. Ainda hoje gosto de o encontrar e lembrar-lhe essa poupança. Ele ri-se todo. Isto nada conta (mas conta). A Greve Académica de 1907 e Alberto Xavier? O Dragão da Rua da Porta Larga? O Café Angola? Os panilas cheiro-a-piça da Sereia? A Educação? A Instrução? O meu Professor Elias Rodrigues Faro? Mato-me agora ou não? Que seriedade é passível de tanta literatura? Espero a noite, não gostarei muito dela – e são as 17h09m. E a noite vem, acampa e é dormida em solidão.



Pombal, 6 de Maio de 2010



Dez da manhã de hoje. Por alturas da ponte sobre o Arunca, confirmo que a minha vida é única e mediúnica. E também – que o Sol desce e incandesce. O senhor Ilídio conversa com um homem de pulôver cinza sem mangas. É uma conversa portuguesa. Falam da criação de animais nas terras. Falam de adubos, máquinas, cargas de lenha, veios de água, borrachas, rotores, mais animais, gente que está na Suíça, juntar erva, padarias, foices, farpões, ferramentas, irmãos, tractores, viadutos, arranhar o chão, ser e ter e haver sem dever. Estou suspenso de atenção. (Pareço que não estou por ter os cornos enfiados no caderno, mas estou.) Na parede, sobre a porta que dá para o reservado, o relógio vigora o assassínio insensível, invisível e multitudinário. É quinta-feira, meia manhã subiu já árvores e montanhas e prédios e cabeças. Este é o nosso tempo no Tempo: nosso primeiro e nosso derradeiro. Penso naquele documentário dos suicidas da Ponte Golden Gate de S. Francisco, The Bridge. Também penso naquele filme com a Kidman, The Others. Observação e recriação da Beleza. Não desistir disso, por favor. Pensar em Sintra, pensar em Peniche. Passar em altifalante silêncio junto ao Mercado, depois Tribunal, Monumento aos Heróis (róis, róis) do Ultramar, ficar sem tinta na caneta. Não tenho medo. Respeito a tristeza, mas não tenho medo dela. Sou uma sombra entre sombras. Não desisto da novidade revisitada da Beleza, disso não desisto. Frecho oblíquos raios de oiro través persianas, colecciono o pó sideral devassador de cortinas. Comove-me tudo quanto é meninas. Penso no João Mário Gonçalves tão terminalmente doente em casa. Tafetá, lucilar, coruscação, trópico tópico. Essencial, acessório, decorativo, final. Treva e trevo, mijo e sangue. Depois, as pessoas vão-se embora, elas têm de ir-se embora, elas, vãs, vão. Uma senhora assim para mim no Figueiredo da Guia: “A vida, não vale a pena vivê-la.” E eu a contrariá-la com delicadeza e ela na dela. Entristeceu-me, era tão de manhã ainda, ela ali entre bebedores de minis e arrotadores de tremoços, ela se calhar com funda indescoberta vocação de Galerias Lafayette, não sei. Penso em pintores. Consumo o meu instante. Ardo a minha hora. Cinzas da infância que, fugacíssimo, fui. As aulas da Primária: a memória é madeira. Tantos homens sós – todos um de cada vez. Ermida, Carromeu, Portocarro, Mira. Fortunas rápidas dos patos-bravos. Cal e gesso e giz e jade. Dúbio Danúbio ubíquo iníquo. Esplendor, Inglaterra, traço a tinta de boca sobre dentes de papel.



Pombal, 7 de Maio de 2010



Dez da manhã de outro hoje. É agora. Aquela mulher é muito corada, parece uma maçã alta. Cai morrinha, o Sol de ontem é uma nostalgia. Não estou mais triste que de costume. Faço por não pensar muito. A vida é estranha, a vida é maravilhosa. A chuva esmigalhada em farinha aérea também é maravilhosa. Leio um pouco sobre Hitler. Trabalho a História.

2 comentários:

Joaquim Jorge Carvalho disse...

E pronto, venho aqui contemplar, à borla, o ouro da minha Língua!
E também os lugares, os vislumbres do tempo (do Tempo), as cicatrizes da saudade que são, antes de as dizermos, apenas dor e ainda não metal precioso ou frutaria.

Abraço, Daniel.
QJ

Daniel Abrunheiro disse...

Abraço, máfrênde.

Canzoada Assaltante