Alguma Anatomia, mas Pouca, e Algum Circo
Vi hoje um homem de tão descomunais orelhas, que, a cinco metros, me pareciam pés. A dois metros, já só me parecia que o homem tivesse deitado as mãos à cabeça. Diz-se que, ao contrário do sexo e do tempo, as orelhas não param de crescer com a idade. Este deveria ser, portanto, muito velho mesmo.
Sentei-me perto dele. Gosto de pessoas. As pessoas são como um circo: têm habilidades, praticam truques, vivem sem rede, vão-e-vêm à mesma janela de ossos, pintam-se com as tintas da tragicomédia, acampam em lixeiras condóminas, amam os cães como a bebés hirsutos, dançam de vinho ao som de sax, bateria & acordeão, têm filhos e sofrem por causa da televisão.
Como o homem bebia aguardente, pude observar a meu bel-prazer aquelas orelhas fascinantes. Num arremedo literário que só me fica bem, direi que me lembravam o que não existe: folhas de couve-carne de veios verrumados a broca de berbequim. De dentro delas, tufavam golfadas de cabelo. O nariz seria, não foram as orelhas, grande. Era de matiz purpúreo e tacto rugoso, sugerindo sem equívoco a prática do álcool e o hábito do escarafuncho. Um pouco muito pouco abaixo, a boca era uma navalhada. Em contraste com a eminência e com o aparato das orelhas, aquela era uma boca mais própria de mulher frígida e consciente disso. Acabava de insignificá-la um queixo tão maciço e peludo como outra cabeça.
Eu gostei muito do homem. E disse-lhe isso. Eu a dizer-lhe isso, e a mulher da taberna assim para mim:
– Escusa de falar com ele, que o homem é surdo. Se quer alguma coisa dele, escreva.
Assim fiz.
1 comentário:
Esse homem tá como o governo, mas esse nem por escrito.
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