28/06/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 11



11. MAGNÍFICAS EMARANHAÇÕES DO INVERNO EM JUNHO

Coimbra, quinta-feira, 10 de Junho de 2010

Despertei sem recuo às sete e picos. Senti logo a circunstância iminente da chuva. À saída, lá estava ela, esperando-me com aquela gravidade divertida dos que se precipitam. Dei uma volta, comprei cigarros dos mais baratos, às oito e qualquer coisa o Nosso estava fechado ainda, dei a volta e enfiei-me no quarto a curtir o meu Padre Brown. No momento (09h15m) em que escrevo, tenho ali o meu pato na rotunda que divido com o quartel da PSP aos pés da Elísio de Moura. Quatro pardais catam a relva com suas duras boquitas. A mulher do pato ainda não chegou. Tenho ali restos de pão e bolo para esta malta toda. Também tenho o meu Pedro Dias e o meu Camilo Pessanha para acabar de ler e anotar. Meto livros para dentro como combustível em depósito de popó. Faço bem, claro. Uma luminescência vem rompendo o cartão grosso do ar. Para as acasteladas bandas do Tovim, porém, a aura é plúmbea, carregada, cerrada, algodão-cotão de freira velha. Olha, um bom trecho de Chesterton (in As Estrelas Voadoras, quarta história de A Inocência do Padre Brown):

A tarde de Janeiro aproximava-se do crepúsculo e os canteiros encontravam-se banhados por uma tonalidade rubra, que os enchia, por assim dizer, com os fantasmas das rosas mortas.

Muito bem esgalhado, sim-senhor. Assim, é uma alegria. Vale-me que me restam alguns milhares para ler com boa ortografia. Não adquirirei nem lerei nenhum que venha cuspido na lamentável “ortografia” estúpida e socrática e abrasileirada. Estimo bem que a esses “ortógrafos” vendidos e sencientes nasçam escarolas de eucalipto nas badanas entrefolhosas do cu.

E, num lance magnífico, o Grande Sol abre a sua Grande Rosa. Estou banhado em ouro. A orelha direita ronrona-me como um gato saciado. É sol de pouca dura, mas valeu. Deve ser isto o dia todo. Diz que até sábado o tempo vai estar assim, não sei.

De Amélia Pais, e por ser o 10 de Junho, recebi um poema de Camões. Em triste contraste, a militarada lá vai perfilar-se de fardeta nova em torno do professor residente da repolhólica. Isto dos presidentes serem professores cercados de generais cheira-me sempre a queimado, sei (bem) cá porquê.

09h41m: carga de águas. Rijeza de varetas pluviais. Um home’zinho de lacoste cigana verde-flúor a subir a Elísio sob o pálio breve do guarda-chuva: apanhado em cheio.

Agora sei: a minha poesia é vender castanhas no Verão e gelados no Inverno. Vender, não. Dar.

Foi, de facto, sol de pouca dura, aquele esplendor matinal. Coisa de fulgor, ouro de um minuto: como a infância. O resto do dia foi de um torpor soporífero. Depois de receber a SB na Solum (em frente ao Gira), retornei a casa para cochilar um pouco. Grelhei-me uma horita em brasas mornas. Depois, li Chesterton. Depois, acordei sem saber que tinha readormecido. O corpo apetecia chá de limão. Fiz-lhe a vontade. Tratei de um dedo, calcei-me, saí a chá e leitura. Umas poucas páginas para terminar o anjo-Camilo (Pessanha) e mais – ou Pedro Dias (talvez amanhã) ou Fitzgerald, S. Sim, Fitzgerald.

(Mas, claro, claramente, o claro dia novo virá, um dia. Hierática será dele a louçania – e sem pavor algum correrá nele o verso do vento e a estrofe simultânea da luz. Eu julgo que sim – e eu espero esse dia já ontem.)

Toda a poesia é, em certo sentido, bucolismo; e bucolismo e regionalismo são tendências do espírito inseparáveis.

(Camilo Pessanha, in A Pátria, de Macau, a 7 de Junho de 1924)

NB: na nota de rodapé da pág. 191 de Contos, Crónicas, Cartas Escolhidas e Textos de Temática Chinesa, o organizador António Quadros indica que a Colecção de Arte Chinesa oferecida por Camilo Pessanha ao Estado Português se encontra no Museu Nacional Machado de Castro, aqui em Coimbra. Espero que sim, que esteja. Vou lá procurá-la. E a campa de Nemésio, em Santo António dos Olivais, volta a meu lume mental por causa de outra nota de rodapé (a 9, a páginas 174), que as duas versões de um provérbio chinês traduzido por Pessanha

(…) depois seriam incluídas na 2.ª e 3.ª edições de Clepsidra. Foram cedidas a Vitorino Nemésio, director da revista (Revista de Portugal), por Alberto Osório de Castro e Carlos Amaro.

Ou seja: o mundo é pequeno, mas (estes) dois poetas – Pessanha e Nemésio – são grandes: e lá arranjaram maneira de encontrar-se. As traduções/versões de Camilo saíram a lume no n.º 10 da citada Revista de Portugal em Novembro de 1940. E já agora: Alberto Osório de Castro era familiar de outro gigante, felizmente vivo ainda, da poesia portuguesa: António Osório. Magníficas emaranhações.

4 comentários:

Petit Joe disse...

É possível falar de Coimbra sem falar do mija-cão?

Daniel Abrunheiro disse...

Completamente impossível, claro. Este caderno também por lá andou e anda.

Anónimo disse...

Então não sabe que a colecção Pessanha, grande parte, esta já em Lx

Museu do Oriente. É a puta da vida... nossa... de Coimbra....

Daniel Abrunheiro disse...

Pois não sabia. Também lamento.

Canzoada Assaltante