18/02/2009

Um Bocado de Camões

Souto, Casa, noite de 18 de Fevereiro de 2009



Por vezes dou por mim a pensar em Camões
como se ele fosse um gajo conhecido,
um tipo daqui perto com jeito para as tipas
e para as confusões de navalhada, mas um gajo
porreiro, pobre e porreiro, rico de língua
como não conheço ninguém,
quando penso nisso,
quando penso.

Não chego a ter pena dele por viver sozinho
numa barraca desassoalhada, sempre tem
uma laranjeira à porta a que o luar dá vestidos
e pratas no olhar dele, aquele olhar dele
que cala os cães da noite e as aves do entardecer,
as aves que escrevem os poentes poemas de um
verso só, altas, de tinta quase permanente,
no final anil do dia.

Também não chego a ter pena de mim
por causa dele, não ligo muito a gajas,
não gosto de navalhas, quando muito tenho
pena de não ser da língua como a língua
é dele, quando ainda não bebeu muito,
quando conseguiu alguma coisa para comer,
um bocado de pão, uma laranja, algum peixe
do rio que lhe trouxeram frito e frio.

Uma pessoa tem de ter algum Camões
em que possa pensar durante a vida, a vida
gosta de viver séculos afora mudando de corpo,
como ele, coitado, nem de camisa, que as tem
poucas e esfarrapadas, também com aquelas
golas já não há muitas, mui mudam modas,
que não modos, se penso nisso fico triste um bocado,
como se pensar fosse um bocado de pão do dele.

3 comentários:

Anónimo disse...

cala os cães da noite, e traz-lhe esta ave solitária, posso entrar? beijinhos, daniel. adorei ler.

Daniel Abrunheiro disse...

Sempre bem-vinda, Alice.

Anónimo disse...

Agora era a parte em que escolhia este ou aquele verso. Mas não. Tudo deslumbrante. Que enorme homenagem a ti, Camões.

Canzoada Assaltante