© Timothy O’Sullivan
Tufa Domes, Pyramid Lake (1867)
Tufa Domes, Pyramid Lake (1867)
Breviário para uma Sangrada Comunhão
Souto, Casa, e Pombal, tardes de 19 e 20 e noite de 20 de Fevereiro de 2009
I
No todo como em parte – a vida.
Na parte como no todo – o estar vivo.
Tudo é parte no todo – o ser vivo.
A morte compreende a vida.
O ser vivo contempla a morte.
O corpo muda de vida dentro.
A vida muda de corpo fora.
Pugnar contra e propugnar – o mesmo.
A pessoa em situação e a pessoa em oposição
– a(s) mesma(s) pessoa(s).
Impossível ignorar – a vida.
Impossibilidade da ignorância – a morte.
Ignorância possível – estar sem ser vivo.
O morto respira/fala/come/anda – no vivo.
O vivo expira o morto.
O morto inspira o vivo.
Parte da morte é toda vida.
Assim toda a vida parte.
Assim toda a vida.
Na parte como no todo.
No todo como na parte.
II
Sento-me um pouco ao sol.
Sinto-me um pouco de sol.
O sol tem-me salvado noites.
Mesmo quando anoiteço sou.
Mesmo se anoiteço sou de sol.
Tenho a cara aberta no ar.
Levanto a cabeça para ouvir com os olhos:
a caspa sonora da alta palmeira
é toda pássaros fervilhando.
Cara/palmeira/pássaros – tudo é.
Tudo pertence.
E tudo sente.
III
O humano é a síntese do local com o universal.
Assim o gato anda no tigre.
Assim a matéria apenas muda de sítio e de eu.
Esta chávena de café pode vir a participar de uma pessoa.
A pessoa reúne todas as condições do infinito: estas e mais
algumas.
O que morre – morre para ser
parte pássaro/parte sílica/parte forragem/parte magnésio/parte água dos olhos de outro que vive/
parte folha de oliveira/e/parte chão de oliveira.
Local e universal contemplam (compreendem) o humano.
IV
Daqui que:
à vida fomos trazidos,
pela morte não seremos traídos.
V
Este sol de ontem na próxima noite.
VI
Território com faces de água devotadas ao templo celeste.
Os telhados eriçados de aranhas: antenas.
As faces das casas enxugando bandeiras:
calças/camisas/toalhas/fraldas.
A exemplar bondade de um cão.
Aceitar por enquanto este eu.
Participar de tudo, tudificar passaradamente,
limoeiramente.
Consolar os anjos deserdados pela morte de Deus.
Estar partícula, ser inteiro, viver localmente,
morrer universalmente,
também morrer localmente e universalmente ser,
vivo.
VII
Um corpo é muitos corpos,
muitos estão em um.
Um dia cheio de noites? Pode ser.
Rústica delicadeza usa a cidade,
como urbanidade não escasseia
no campo.
Assim o ar é feito de aves,
sem elas embora.
Assim a mãe assimila homem e
frutos poedeiros.
Um corpo é muito.
VIII
Digamos que uma pessoa ama outra:
ama nela (não o sabe mas ama)
as estrelas/as cruzes/a sílica & o magnésio/
o ar & a nuvem/a vida com sua morte/
a noite & o dia & o mesmo amor.
IX
O homem sozinho ceou fruta verde e negras azeitonas.
Coroou de vinho leve a dura boca sozinha.
Tomou café pensando além da chávena.
Chama-se
Fernando/Charles/Sukura/Strondheïm.
Árvore particular deita-lhe sombra à cabeça.
Rastilho de pensões de uma humidade fria.
Representação de acessórios de automóvel.
Tez rosácea, encanecidas fontes à cabeça.
Delicado manjedor, pés de calfe, gravata acetinada.
Sómenzinho.
X
Eu se pudesse juntaria todas as velhas mulheres
com seus lumes ancestros, suas mãos (expostas raízes)
convocando o deus molecular do lume, suas grisas
cabeleiras soltas ao bruxedo do Tempo,
seu quê de pombas/milhafres.
XI
Os futuros mortos mantêm vivos seus antepassados.
XII
Coretos de, digamos, 1920, quando Brighton e a Figueira da Foz eram já, pela vez última, a mesma coisa.
Os músicos, as senhoras vestidas de bolo-de-noiva,
o lazareto íntimo dos poetas-pintores,
as crianças já antigas, impressionistas, não-crianças
se recordadas.
O mar rocheando de areia o Tempo.
Recorda-me na flor, na panela, na campânula,
na loja, no recado de vidro que a dura boca este/lhaça.
Gelados de nívea doçura nascendo da baunilha infantil,
secretas amarguras de cambista judeu amador de fados,
1921, 1922, 1923, 2009.
Eram, já.
XIII
A menina quer arroz, e
sou eu,
ela.
XIV
Tenebras salacústicas muit demoram a vir.
Vilitambracismos esmos têm de porvir.
(Não. Limoeiro, não. Cinza, sim – cinza, sim.)
(Brighton, Figueira da Foz, Figueira de Brightoz.)
XV
A escrita tem correspondido minuciosamente ao posto de
correios-telégrafos-e-telefones que perder a infância
assinala a vermelho no psyché do coração, digo eu,
que tenho escrito (embora não correspondido às
expectativas).
XVI
Sou o meu melhor homem – e o meu limão pior,
isto tudo depende,
aliás de nada.
Tomaram-me os Anjos do Amanhecer
No todo como em parte – a vida.
Na parte como no todo – o estar vivo.
Tudo é parte no todo – o ser vivo.
A morte compreende a vida.
O ser vivo contempla a morte.
O corpo muda de vida dentro.
A vida muda de corpo fora.
Pugnar contra e propugnar – o mesmo.
A pessoa em situação e a pessoa em oposição
– a(s) mesma(s) pessoa(s).
Impossível ignorar – a vida.
Impossibilidade da ignorância – a morte.
Ignorância possível – estar sem ser vivo.
O morto respira/fala/come/anda – no vivo.
O vivo expira o morto.
O morto inspira o vivo.
Parte da morte é toda vida.
Assim toda a vida parte.
Assim toda a vida.
Na parte como no todo.
No todo como na parte.
II
Sento-me um pouco ao sol.
Sinto-me um pouco de sol.
O sol tem-me salvado noites.
Mesmo quando anoiteço sou.
Mesmo se anoiteço sou de sol.
Tenho a cara aberta no ar.
Levanto a cabeça para ouvir com os olhos:
a caspa sonora da alta palmeira
é toda pássaros fervilhando.
Cara/palmeira/pássaros – tudo é.
Tudo pertence.
E tudo sente.
III
O humano é a síntese do local com o universal.
Assim o gato anda no tigre.
Assim a matéria apenas muda de sítio e de eu.
Esta chávena de café pode vir a participar de uma pessoa.
A pessoa reúne todas as condições do infinito: estas e mais
algumas.
O que morre – morre para ser
parte pássaro/parte sílica/parte forragem/parte magnésio/parte água dos olhos de outro que vive/
parte folha de oliveira/e/parte chão de oliveira.
Local e universal contemplam (compreendem) o humano.
IV
Daqui que:
à vida fomos trazidos,
pela morte não seremos traídos.
V
Este sol de ontem na próxima noite.
VI
Território com faces de água devotadas ao templo celeste.
Os telhados eriçados de aranhas: antenas.
As faces das casas enxugando bandeiras:
calças/camisas/toalhas/fraldas.
A exemplar bondade de um cão.
Aceitar por enquanto este eu.
Participar de tudo, tudificar passaradamente,
limoeiramente.
Consolar os anjos deserdados pela morte de Deus.
Estar partícula, ser inteiro, viver localmente,
morrer universalmente,
também morrer localmente e universalmente ser,
vivo.
VII
Um corpo é muitos corpos,
muitos estão em um.
Um dia cheio de noites? Pode ser.
Rústica delicadeza usa a cidade,
como urbanidade não escasseia
no campo.
Assim o ar é feito de aves,
sem elas embora.
Assim a mãe assimila homem e
frutos poedeiros.
Um corpo é muito.
VIII
Digamos que uma pessoa ama outra:
ama nela (não o sabe mas ama)
as estrelas/as cruzes/a sílica & o magnésio/
o ar & a nuvem/a vida com sua morte/
a noite & o dia & o mesmo amor.
IX
O homem sozinho ceou fruta verde e negras azeitonas.
Coroou de vinho leve a dura boca sozinha.
Tomou café pensando além da chávena.
Chama-se
Fernando/Charles/Sukura/Strondheïm.
Árvore particular deita-lhe sombra à cabeça.
Rastilho de pensões de uma humidade fria.
Representação de acessórios de automóvel.
Tez rosácea, encanecidas fontes à cabeça.
Delicado manjedor, pés de calfe, gravata acetinada.
Sómenzinho.
X
Eu se pudesse juntaria todas as velhas mulheres
com seus lumes ancestros, suas mãos (expostas raízes)
convocando o deus molecular do lume, suas grisas
cabeleiras soltas ao bruxedo do Tempo,
seu quê de pombas/milhafres.
XI
Os futuros mortos mantêm vivos seus antepassados.
XII
Coretos de, digamos, 1920, quando Brighton e a Figueira da Foz eram já, pela vez última, a mesma coisa.
Os músicos, as senhoras vestidas de bolo-de-noiva,
o lazareto íntimo dos poetas-pintores,
as crianças já antigas, impressionistas, não-crianças
se recordadas.
O mar rocheando de areia o Tempo.
Recorda-me na flor, na panela, na campânula,
na loja, no recado de vidro que a dura boca este/lhaça.
Gelados de nívea doçura nascendo da baunilha infantil,
secretas amarguras de cambista judeu amador de fados,
1921, 1922, 1923, 2009.
Eram, já.
XIII
A menina quer arroz, e
sou eu,
ela.
XIV
Tenebras salacústicas muit demoram a vir.
Vilitambracismos esmos têm de porvir.
(Não. Limoeiro, não. Cinza, sim – cinza, sim.)
(Brighton, Figueira da Foz, Figueira de Brightoz.)
XV
A escrita tem correspondido minuciosamente ao posto de
correios-telégrafos-e-telefones que perder a infância
assinala a vermelho no psyché do coração, digo eu,
que tenho escrito (embora não correspondido às
expectativas).
XVI
Sou o meu melhor homem – e o meu limão pior,
isto tudo depende,
aliás de nada.
Tomaram-me os Anjos do Amanhecer
Souto, fim da manhã, e Pombal, tarde de 21 de Fevereiro de 2009
Tomaram-me os anjos do amanhecer.
Alba de galos, de frígidos limoeiros.
Portugal, todo eiras e quintais, de volta ao meu corpo
selecto.
A maravilha da vida só idioma, não propriamente
outra maravilha qualquer.
Nem o Cristo nem o Buda me tomaram,
esses nomes com que entretemos a ignorância.
O que sou agora é o que o mundo me pode ser:
um ponto no Universo,
um universo no ponto.
Império de meus dias anoitecidos,
a alma glabra bosqueja arremedos.
Rotundo não posposto aos medos,
lazareto sim dos porvires idos.
Ó minha pequena alma, minha Mãe!
Ó minha pequena Mãe, tua alma!
Derredor, frutifica o magno candelabro das árvores de fruto.
O cavador doutora jeiras, que gasodutam seivas.
É o sábado, a glória mana.
A minha Irmã deita contas à vida como o pescador,
a rede à mesa do mar.
É tão possível ser feliz, que uma pessoa até entristece
de teclado japonês com caixa-de-ritmos.
Chita & organdi, néctar & palato-de-menino,
solução & absolvição & destino.
Escrevi, só para ti, um
Breviário para uma Sangrada Comunhão.
(Fi-lo porque
0s fantasmas pastam luz na casa encerrada,
de fora, o ferrugento limoeiro, os gatos artríticos,
o pote da água que choveu livre, ora prisioneira
de sua mesma liquidez como um escuro olho triste,
porque
os fantasmas são os carteiros dos mortos,
quando nasci, ’inda havia telegramas,
e o nosso coração é a nossa criada-de-servir.
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