Assombração: Pombal, noite de 9 de Fevereiro de 2009
I. Entrevendo Robert Wise’s The Haunting
Souto, Casa, madrugada de 2 de Fevereiro de 2009
As crianças envelhecem muito depressa
quando lhes chega a memória.
Ballesteros negava o passado e o futuro,
só o presente existia para ele – inteligente,
chegou a muito velho.
Mas as crianças, Senhor?
Assombramo-nos.
Construímos vastas (infinitas) mansões
de cor.
Alas intersectam alas e alas e
existências.
Armaduras e cabeças animais empalhadas, dentro.
Fora, um jardim-parque glacial, que um jardineiro
sem idade vigia.
Quartetos de cordas transluzem hologramaticalmente.
Mas nos copos-flautas é vinagre o que espera
a boca.
A grande peça de carne assada fervilha de larvas.
Augusto Gil, os Antónios Botto e Nobre, o brando
Raul Brandão, Mestre Camilo Pessanha,
os desolados meninos uno-vários
Fernando, Alberto, Álvaro, Ricardo e Bernardo,
Eça demandando em vão um copo de leite morno
para acalentar a peçonha que lhe aranha as tripas,
Ramalho fazendo (finalmente) sorrir Junqueiro,
o Oliveira Martins ainda chateado por já não ministrar,
Antero sofrendo sofrendo sofrendo sofrendo,
os condes de rodapé da pré-República charutando,
como se nada fosse com eles (e não era e nunca foi)
– tanto fantasma na desolada mansão da não mansa
desolação.
Beleza negra, a da casa torturada de brancas carnes.
Para sempre apagados, lustres enormes choram cristal.
Os largos linhos semelham peles mortas
tomados de tormentos e tomentos.
O argênteo talher, embaciou-o o abandono.
Frascos de licor enrubescem ouros.
Terrinas fumegam de frio caldos enxutos.
Candelabros suspensos no ar sem mordomo.
Risadas e histerismos de criadas há tanto defuntas
enervam ainda os quartos do sótão.
Bacios de louça campestram ainda de rosas inglesas.
As crianças nunca deveriam aprender a ler
– e a escrever, muito menos.
(Olhai as vidas de Fernando, Alberto et alii).
Vamos fumar para o jardim?
A pérgola é perto de fresquíssima água mineral.
Cantochão, pedra, ramos de árvores seculares,
do luar a sideral pérola para um avatar,
rosas portuguesas, espectros de cães de estimação
– é bom fumar sentindo tudo, o decalque
das mãos da raposa na terra verde, a atenção
professoral do mocho, os vidros que caem da Lua,
o vento em câmara-lenta de quando se não sabe
que se recorda ou cria ou recria ou acorda.
(Não podemos ser poetas se nos não enlouqueceu ninguém
na família. Eu
tive uma bisavó que cegou e foi centenária, mas
não chega.)
Assombrações: tanto pessoas como mansões
dependem da qualidade (e da profundidade)
das fundações.
II. Um Dia os Anjos de Gesso Abandonam
Pombal, noite de 2 de Fevereiro de 2009
Um dia os anjos de gesso abandonam os ondes
onde o mármore é jardim para vir para as ruas
tornando-se nós.
Um dia os anjos vão fazer isso
e nós nada poderemos
(sequer algo quereremos)
contra isso.
Vamos ser de gesso como já somos
em tribunal
na mercearia
na fábrica
na discoteca
na biblioteca
no parque
no teatro-cine.
Nós temos da vida o dízimo da pedra.
Um pouco de atenção é quanto basta
para a total percepção do dízimo da pedra.
A vida acontece ser a mais inimiga coisa do viver.
Se de helicóptero nos víssemos, iguais todos a anjos,
em nossos cafés de província, em nossas casas
térreas como atitudes, em nossas dimensões sufocadas,
se de gesso nos confirmássemos:
a vida acontecendo ser,
então,
que vida.
Fundas projecções no basalto, longilíneas vielas
ladradas a cães prisioneiros, a pele das plantas
dos pés tocando a cara húmida da mãe-terra,
projectados e fundos os anjos da clonagem nossa,
nos anos iguais.
Ao alto, a Lua,
vigorosa de catecismo, cáustica e amarga,
candeeiro de ciganos e de motoristas.
Havendo torrado a fímbria do mar,
nenhum Sol,
por pagão e dormente.
Camisarias, ópticas, ferragens, pastelarias.
Mármores, mármore, mármore, mármore.
Ou
gesso, gesso, gesso, gesso.
III. Gosto de Assistir à Ceia dos Casais Populares
Ibidem
Gosto de assistir à ceia dos casais populares na casa-de-pasto.
O casal de hoje é jovem, ela para aí uns 24, ele trinta e picos.
Um menino, claro: na província, a prenhez é que matrimonifica.
Derredor, os homens de rostos roxos azeitonam-se, indiferentes àquela espécie de felicidade em triplicado.
Eu agora tenho tempo na vida para gostar de ver.
(Mais de ver que de viver.)
Gosto deste casal + 1 como já de tantos outros escrevigostei.
Gosto que seja um verso aquela dose para dois e para poupar.
É um verso escrito a tinta de lulas guisadas com batata cozida.
A senhora bebe gasosa, ele bebe um jarrito de rubis.
O menino não come nada, adormeceu, coitadinho.
Os meninos de agora não são como os do meu tempo.
Os meninos de agora passam a vida com os avós-creches.
Os meninos de agora passam a vida à espera dos pais.
Os pais chegam-lhes com a noite, bovinos de cansaço do campo.
Esta mãe esteve todo o dia na escola a lavar a escola.
Este pai todo o dia andaimou matérias de reboco.
Gosto de Portugal.
IV. Lembro-me de um Senhor chamado Duarte
Ibidem
Lembro-me de um senhor chamado Duarte.
Ele bebia, mas vivia.
Agora já viveu, não bebe já.
Era um istmo.
A casa comercial dele dava-se a labirintos:
o do bolor, o da sardinha frita, o do mijo,
o da caldeirada de bacalhau, o do pudim de pão.
Entrava-se no escuro, ele luzia como um cardeal.
Era antigamente, era em Peniche.
Passados uns três lustros, volvi ao sítio.
Não havia sítio.
Era um plano de mármore, a casa.
Ele, um anjo de gesso.
V. Pode Ser
No Moto Clube de Pombal, tarde de domingo, 8 de Fevereiro de 2009
Pode ser que a tua próxima vida
seja algo a que pertenças.
Um país diferente, um corpo-nação
com pernas para andar.
Pode ser que voltes a ser uma bela coisa,
uma flor morena que as mulheres queiram
ter.
Pode ser que o teu próximo tempo não
seja um papel queimado,
uma ardida laranja,
uma rosa aziaga nos dias carburantes.
Pode ser que sejas feliz.
Pode ser que sejas.
Nas tardes de chuva da eternidade,
pode ser que possas.
Tudo pode ser no espaço-tempo,
digo-to com relativa segurança absoluta-
mente.
A mitografia da Noruega/Argentina,
extremos Norte/Sul,
a vida feita encarnado azul.
Pode ser que aconteças como uma árvore,
relâmpago de ti mesmo na cordial condição cardial,
sideral, Portugal.
Pode ser que faças ainda da tua vida uma alfaia agrícola.
Pode ser que a tua mãe nunca mais prescinda da vesícula.
VI. À Medida
No Tó Mota, tarde de domingo, 15 de Fevereiro de 2009
O homem é a medida do dia
como o dia é a medida do homem.
Não tarda nada não tenho nada
excepto meio século ido mais que vivido.
Luzem as luzes na terra de repente azul.
Tenho de fazer alguma coisa por isto.
Diz que há outras terras, onde o pão salga.
Diz que há que fazer, alhures.
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