01/02/2009

Dando o Vento no Cedro ante a Casa

Souto, noite de 31 de Janeiro de 2009



I

Dando o vento no cedro ante a casa, dei por mim
a pensar na morte.
Não foi triste acontecer-me isso, era uma espécie
de sugestão eólica, algo assim.
O vento labaredava no cedro, eu parecia
nem estar em mim nem em casa, nem
alhures: a morte pensava-me.
Não entristeci, aproveitei aliás o momento.
Um vento num cedro, em tarde fria e pluvial,
é das mais formosas coisas em Portugal.

Depois, tratei-me a canja de galinha e laranjas,
saí para tomar café no café da aldeia, estava
a dar o Sporting não sei contra quem.
Dois homens já descriados falavam da firma,
um deles disse-me que a festa do Casal Fernão João
é hoje.

Dei por mim a pensar na dificuldade das festas
de Janeiro, o frio que faz, a chuva que apaga
o incêndio do vento nos cedros, estas coisas
assim.

Se calhar, penso muito, se calhar isso pode não ser
cá muito bom para a saúde.

Quando vivia em Peniche, o vento ardia todo
no mar.
Eu era muito novo, tinha 22 anos, e então
sim, então eu era triste.

Em Maio, tinha-nos morrido um irmão.
Eu tinha outra casa, então.
Também havia um cedro ante essa casa.
Eu tinha um cão, o mesmo
que de vez em quando me aparece nos versos.

Dando hoje o vento no cedro do futuro (isto
que veio no Tempo), não foi no nosso irmão
que pensei. Não. Foi
na morte,
nisso que acontece por telefonema

ou poema.



II

Depois, que é agora, pensei
nas courelas, nos animais que pastam nelas,
pensei no Rei e na Grei e na Lei,
mas sobretudo pensei
nas courelas.

Gosto deste café porque vende latitas de atum
e bolachas-baunilha e até cassetes do Emanuel.
Agora tenho o nome do meu Pai, Senhor Daniel.
É como me chamam e eu gosto, como se fora um
milagre ele continuar través mim.

Às vezes, ele há pequenas alegrias assim.



III

Drapeja na noite o vento negras, negras bandeiras.



IV

Agora, um homem está sentado no meu corpo no café.
A noite fechou a aldeia como um toldo de circo.
Faz o homem de animal, de malabarista, de circ’artista.
Janeiro acaba em torno, acaba dentro do poço-da-morte.

Que admirável é o nenhures a que chegamos!
Que admirável é o nenhures a que chegámos!
Casitas vigiando laranjeiras, ruelas esconsas como
as veias do coração, onde mói a moinha pluvial.

Arrefecem as mães ao lume da água, mas os cedros
flecham vento oblíquo, ateadores da benigna
flama, muito padece quem ama – etc.
O homem no meu corpo quer não sei quê, quem.



V

Devo ter ido no vento.
Esparsa palavra de gente, devo ter ido no vento.



VI

Agora é amanhã, é domingo, só à tarde
o circo trabalha, depois vai-se embora,
desmantelam os animais, a pobre magia,
concedem à noite o estatuto de
maior espectáculo do mundo,

e então eu e o cedro e o vento,
assim.



VII

Gosto de quando eles jogam as cartas, no café.
Em casa, as mulheres deles urdem caldos,
crianças, cafeteiras, lumes.
Em casa dos jogadores, as avós enviúvam os cantos.
Há retratos de antigos matrimónios a gás, no fumo
do Tempo, na casa dos jogadores de cartas.

Sabe-me a boca a pássaros chicoteados de chuva.
Latitas de sardinhas, pacotes de bolacha-maria.
Crisálidas larvam, pescarias apetrecham.
Muito ama quem padece.

Batem os duros nós dos dedos a pedir trunfo.
Manilham duramente o frio atroz da vida.
Não pensam na vida, só na firma.
Em casa os retratos, as mulheres.

Aqui, o jogo.



VIII

Infinita é a beleza do homem que vive dentro do homem.
Infinita, dele a tremenda antecipação do pó.
Feito de areias, esculpido a água, tremendo, infinito homem.
Tremendo de frio, também.

Eu tinha só 22 anos, vivia em Peniche perturbado pelo mar.
Parecia-me que não podia ser tanta beleza, que
tanta tristeza não podia ser.
Podia.

Venero a azeite os meus avós portugueses, gente
do tempo do Rei, rostos de fumo em duplos retratos
siamesados pela vida e pela morte e pelo amor,
comedores de caldos, engendradores de filhos,
esses circos do futuro de café de aldeia.

Quantos homens dentro de um homem jogador de cartas?
Especiosa especiaria, cada José, cada Joaquina.
Estupenda tristeza, o ferro no lume, as aves na brasa.
E cada todos em cada um, cada um em sua casa.

Agora, amar ter sido menino é uma pedofilia.
Agora é amanhã, que são de azeite os ontens.
Agora joguemos as cartas à face da pedra.
(As mesas são de mármore, como tudo imita.)

Quantos homens.



IX

Agora, a rosa do lume purpureia rubis de cardiologia.
Esteve muito frio toda a vida o dia.
Floresce a preta rosa, a noite negra.
O cedro diz vento, final palavra de ir

embora.

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Canzoada Assaltante