26/02/2009

Habitação e Povoamento de Pombal (5 e 6)


5

Tarde de 9 de Fevereiro de 2009

Assisto de lado ao espectáculo do mundo.
O Inverno continua aceso, espécie de furor frio com árvores, carros, ruas, cafés. Os noticiários enojam-me. Hecatombe (holocáustica) do neoliberalismo. Merda de pós-modernidade. Rótulos vãos. Razão tinha o Lipovetsky: esta é deveras a Era do Vazio. Domino mal o nojo por tudo isto. Fecho-me na poesia. Leio pouco, por estes dias. Bocejo bastante.
Outras vezes, dou por mim a pensar em Rilke, não sei porquê. Sombra luminosa – essa figura de grande liquidez ocular. Mestre, naturalmente. É da mesma configuração de Maigret, não sei porquê também. Greene, Maugham. Le Carré. Burgess. António Duarte. Carlos de Oliveira. Tudo fantasmas. A cabeça cheia de fantasmas.
Tarde fria, despovoada. Vontade de cozinhar (uma sopa). Café em chávena azul. Espremer o coração como a uma laranja. Deixar entrar a pulsão poética. Torrar pão, fazer lume. Esperar a pacificação. Alongar a hora.

ALONGAR A HORA

Convoco as mãos para ofício da alma.
Sou um velho homem entre árvores frias.
Sei onde ficam as casas, suas sombras humaníssimas.
Tenho o mapa dos incêndios.
Glorifico a rosa e a laranja.
Falo com o pão.

Os meus mortos redigem obscuramente.
São eles os oficiais de minhas mãos?
São-no.

Bispo da íntima solidão, incenso em glória:
pedras, pó, ramagens, leveduras, orlas.

Conheço profundamente a ignorância.
Aurifico areais, menos e menos sexualizador.
Leio o verso de espuma do mergulhador.
Anseio um barco, uma manhã prateada a azul.

Estou.

Esta é a minha hora grave, esta a minha boca.
Fundo países regionais, de papel todos.
Se viajo, quieto me dou ao cinema: tanto olhar.
Doem-me os animais de berma morta.

Vou.

Caminho dentro.
Gostaria de partilhar Rilke, chocolates, anémonas,
mas tudo está pela hora da morte.
Espero um telefonema, reservo uma mesa no hotel.
(Mas não há hotel no pinhal: invento.)

Sou o velho apanhador de cacos.
Estou de coração de louça.
Muito me surge o mar na ideia.
Fecho os olhos para viajar mais.
Imito dos meus mortos as palavras coloridas.

A magreza das filhas dos barbeiros piana a tarde.
Do cauteleiro, o filho droga-se de chá marroquino.
Do senhor polícia, a mulher está em voga falatória.
E o vereador cavalga a facturação das águas.

Nem tudo são rosas.
Sonetos há que carmenmirandam a língua frutuosa.
A miséria de Camões na ilha moçambicana.
A flor do cancro da imortalidade.
Azeitonas e navalhas na noite churrasqueira.
A poesia vuímetra do coração enegrecido.

A longa hora: a vida breve.


6

Entardenoitecer de 9 de Fevereiro de 2009

Blusa de amarelo-ovo sob colete acolchoado castanho. Ancas e coxas grossas forradas a bombazina castanha. Botas pretas e altas de fora das canelas. Mamalhal abundante gelatinando a inflação láctea. Cabelo pintado de negro-azul como duas tiras de carvão, como um melro pousado. Passa debaixo de um guarda-chuva minúsculo, que mais acentua o contraste do grande corpo fêmeo avançando determinado no crepúsculo.
Chove arame frio. A existência inverna-se sem remissão. Estou calado a um canto do mundo. Cavalheiros vestidos de cinzento comentam os incêndios na Austrália, depois a crise económica. Fazem-no com delícia, ouvintes de sua mesma doxa.
Hoje não entristeci de mais. Colhi a flor possível do dia. Fiz uma sopa boa, comi-a soprando, as gatas dormitaram as horas. O Inverno enovela-as. Pedem mimo, palavras, cursos da mão no espinhaço. Dou-lhe tudo isso.


AGRADECIMENTO

Agradeço a infinitude da palavra.
Todo ardo nela, imemorial.
Este é o azeite da minha lavra.
Língua-oliveira sideral.

Respeito a tradição da dor.
Afundo-me azul na preta noite.
Quem te teve amor, foi-te
leal e grato sem favor.

Arde o pão na pedra antiga.
Animais atiram sons de prata.
O pouco viver muito mata.
A vida ao viver obriga.


E como vidros me caem da mão os versos. Projecto Kafka por as ruas escuras. Ouço os comedores de pescada e torresmos, assisto de lado ao mundo. A minha cabeça enegrece para ser rosa sobre sudário. Que me posso significar, ainda? Revoadas de pombas, tordos, aviões, folhas despregadas do livro das árvores, besta dócil, amargura e caligrafia – minha fortuna além do amor. Evanesço? Evanesço. Transpareço. Desapareço. Peço. Estou atento ao comércio, sei de cor as manias do inconsciente. Escuso até de procurar. A minha demanda não é vital, é idiomática. O segredo e o tesouro estão na gramática: penso que sempre soube isto, nada mais que isto me interessa.
Aquele homem chama-se Victor. É portador de óculos fundos, esguelha de estrabismo. Miúdo de corpo e engraçado no falar. Vive sozinho. Come nesta casa-de-pasto há anos. Conhece toda a gente pelo nome. Cresce sem filhos para a morte. Paga os seus impostos, desconta para os bairros ciganos, não tem que se diga dele. Deve ter sido por causa do amor de alguém por alguém, se foi concebido, tido e nutrido e atirado. Agora, habita um cubículo da cidade: sala pequena, mínimo quarto, serventia de casa-de-banho e cozinha. Rilke no túmulo, junto à Igreja de Raron. Toda a vida de Wera Ouckama Knoop em apenas 19 anos (1900-1919). De perfil, o Anjo do Relógio da Catedral de Chartres. Os olhos extraordinários de Rainer Maria Rilke por Lou Albert-Lasard. Duíno, Castelo. Paulo Quintela na Serra do Gerês, depois em Coimbra no mês de Setembro de 1967. Victor, este homem.

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Canzoada Assaltante