19/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 274 a 277


274

Domingo,
18 de Abril de 2021

    As minhas aspirações californianas não vão além da Figueira da Foz, Mira às vezes, no máximo Tocha. Fico-me bem assim, crê-lo não é ingenuidade V.ª nem minha. É a minha domesticidade, espécie de patriótica índole de incurável provinciano. Fui uma vez a Cabo Verde – e voltei logo que pude. Em Bruxelas estive quatro dias – chega bem. Paris & Londres, nunca-jamais-em-tempo-algum. O torrão-local é-me suficiente: tenho aqui os livros, algumas fotografias, música + do que q.b. Ainda fiz, algumas vezes, alguma Espanha. Ao Algarve já não vou há trinta anos. Tenho o passe mensal dos autocarros de Coimbra: já é muito mundo.

275

Três em ponto da tarde.
Os vivos tratam de si.
Irão, Israel, Índia – Ignomí-
nia: nenhum acabar de
misérias voluntárias aí.

276

15h06m
Já dormem em pedra há muito muitos príncipes.
Floresta em bruma chama-os em sonhos de quimera.
Vou secretariando essa puridade sem porvir.
15h14m
Peças sinfónicas pedem fidelidade, esmola de atenção.
Infinitude selectiva, gratificada de óbolo belo.
Em purificada soledade, não é tão agreste a continuidade.
16h12m
Dissemelhantes sensibilidades guerreiam-se surdamente.
Poderiam (deveriam) não proceder de tal maneira.
Todavia, resistem a qualquer boa-fé, são irremediáveis.
16h44m
Existência de mulheres repousando um pouco entre rosas.
Passagem levíssima de zéfiro bucolizante.
Marulhar dulcíssimo de águas de arroio, frigidíssimas.
17h41m
O cortinado filtra a luz áurea, doméstico lume ambiental.
Certa doçura melosa doma as pálpebras, aquieta o coração.
Quietude que ouro vale, sossegado o entendimento.
19h52m
Imagens: gente em uma praça, um homem gritando, arvoredo,
carros, vozearia de energúmenos, fealdade geral,
panos berrantes, certo triunfo da bípede imundície.

277

    Em remo(r)to ano-lectivo longe de Coimbra, tive direito a nove meses consecutivos de inverno inclemente. Digo mais & não minto: da/na minha existência, foi nesse inverno ingente que me apercebi da natureza irremediável da vida – a geral como a particular: pois sem remédio se morre como sem remédio se nasce.


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Canzoada Assaltante