© Varela Pècurto (?)
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Sexta-feira,
9 de Abril de 2021
Um homem de tez muito clara, olhos de aquosa transparência com safira ao centro de cada. Fala do que sabe por experiência (muito) própria. Expressa-se com clareza, com natural harmonia não-ensaiada. Gosto bastante de escutá-lo. Nunca o fiz pessoalmente, porém. Só em documentos audiovisuais. Desconheço se ainda vive. Gostaria disso, de que vivesse ainda. Nos filmes que estudei, não era demasiado velho. Os filmes são do fim do século passado, coisa de há 25 ou 30 anos. Ainda não são, portanto, relíquias arqueológicas.
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Passava pouco das três da tarde, vai o céu de relampejar, trovoar, granizar & dar-se de grossas cadentes águas. É espectáculo que sempre me mesmeriza. Esplendorosa autoridade furiosa dos elementos, ante que a mão humana nem para graveto serve.
E todavia é dia de saída: Gatito ao veterinário, Correios, pão fresco a aviar, talvez algum lápis novo.
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Morreu o Príncipe-Consorte de Inglaterra, Duque de Edimburgo, marido de Elizabeth II – Philip de seu nome, aos 99 anos. Sei muito pouco do extinto cavalheiro. Veio a Coimbra em 1957, ao que consta de vário documentário. É viúva, pois, a já vetusta soberana britânica. O nomeado senhor viveu perto, muito perto, de um século. Camões pouco mais de cinquenta, talvez. Pessoa, 47. Ruy Belo, 45. Cesário Verde, 31. E por abaixo adiante.
De qualquer modo, todo um século de experiência respiratória se vai com ele. Não morreu anónimo nem de fome – e, ao que parece, deixa esposa, filhos & netos com alguma coisa de seu.
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E então Proust relido & retrouvé:
“O que não tivemos de decifrar, esclarecer pelo nosso esforço pessoal, o que era claro antes de nós, não é nosso. Só vem de nós próprios o que tiramos da obscuridade que está em nós e que os outros não conhecem.”
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Enquanto a televisão transmite uma comédia-bufa da barraca judicial portuguesa (de que o crime sairá impune; e a culpa, solteira), vim à rua com Gato & tudo. Nada me falta. Está, como gosto, invernoso o dia. Escolhi um canto mais ou menos tranquilo para sede de exercício destas linhas com mais pretérito do que porvir. Antes de aqui chegar, soslaiei, na fila dos Correios, uma impertinência de ciganos, que acabou por serenar-se como à chuva o fósforo mal aceso. Campeia pelo mundo mais sordidez do que à vista apressada se lobriga – tanto o mundo imaterial da televisão quanto o mundo próximo de outras ciganadas à solta (algumas das quais em directo televisivo).
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A compasso da hora, transparente instante da obscuridade, vingo
a prorrogação do respirar ’ind’algum tempo, a ver se sim ou sopas,
afinal não depende cada um de si só mas de inalienável lei-motriz,
autoritária & incondicional condição que ao humano desconta só
a sós retalhado como a granel despachado.
Ontem como amanhã (se um amanhã florir a meus olhos piscos),
a arte de r-existir ditará, como ditou sempre, seu regulamento,
o qual abarca o digerir como o pasmar, o bocejar como o tossir,
o postal como o penso-rápido, a pérola como o porco,
o pouco como o bastante, a noite como a criança nela deposta.
Biombos entre cada um & seu entendimento não facilitam,
demoramos muito a desvelar a simplicidade afinal crucial,
qualquer animal a leva a cabo sem esforço nem alternativa,
viva em nós a consciência, essa espécie de maldição irónica
com que não atinamos nem sentido-da-vida nem fuga-â-morte.
Podendo, voltarei pois a este bairro onde dizem melhor o pão,
o Gato dorme na transportadora que o cativa, café tomado abatanado,
compras feitas, tal como Ulisses embarco de retorno a casa,
dez minutos ou dez anos valem afinal por escrito o mesmo,
nada ou zero ou coisa alguma a compasso de mais nenhuma.
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Falei hoje mui apaziguadamente com S. Gomes.
É pessoa distinta, de curtido cabedal vivido.
De outra gente ao de leve versámos assuntos.
Rimo-nos alguma coisa de algumas coisas.
Outras, porém, nos fizeram ranger dentes,
que eu aliás já nem tenho, só dos mandados-fazer.
Não vou neste poema perorar sobre tal.
Interessa-me tão-só referir que conversei – e não sozinho,
nem a cavalo de vinho.
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Passou um par já veterano de irmão & irmã, reconheço-os de há muitos anos, vieram para este bairro em 1977, por aí. Partilham um duplex no mesmo prédio em que viva a Conceição Peres, filha dilecta de um amigo do meu Pai. Enviuvando, a Ção foi viver para as Alhadas, não sei mais. Este par chama-se Germano & Olga, Palmeirim da mãe, Baptista do pai. Nos afinal felizes tempos anteriores ao bicho-chinoca, eu tomava café por estas bandas umas três/4 vezes ao mês. Via-os quase sempre. Germano dava um salto ao quiosque, de onde regressava abastecido de jornal desportivo + um maço de Português Suave. Esperava-o, de pé na esplanada, a irmã. Só em ele chegando se sentava ela. Ainda assim é, com a diferença de Germano ter deixado de fumar. É um manso doido pela sua Académica, com uma pontazita cosmopolita de benfiquismo moderado. Gosto de vê-los pela curial razão de estarmos os três vivos enquanto os vir & eles forem vistos.
Tal a Conceição Peres, também já por aqui não vive o Bruno-Zé Azinheira Marques, rapaz camionista que encontrou a morte à espera dele numa auto-estrada alemã. Soube dessa tristeza quando ainda morava no Caramulo. O Bruno-Zé vivia em união-de-facto (que é como agora se diz amigado) com a bonita Verónica Maria Caldeira Palrilha. Moravam na vivenda verde cintada a lilás ao lado do posto-de-saúde. A Verónica era recepcionista de uma firma de advogados, recebeu uma compensação pela perda do companheiro, ainda bem que faziam há anos o IRS em comum. O pai do Bruno-Zé é que se foi muito a baixo. Era sindicalista reformado, tinha sido figura muito activa entre a malta metalúrgica logo desde o 25 dos Cravos. Acho que Teodoro Marques ainda vive, não sei bem. Só sei bem que ainda sei muito pouco – e que, por este andar, ainda chego à morte burro como quando nasci.
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