Daniel dos Santos Abrunheiro
10 de Abril de 1917
24 de Abril de 1994
295
Sábado,
24 de Abril de 2021
O senhor-meu-Pai morreu hoje, 24 de Abril, há 27 anos. Foi & é & será como a Lei manda. Sobrevivo-lhe por enquanto – também é da Lei. Falta-me sentir em presença a bondade dele. Haverá talvez quem considere um despudor o facto de eu abrir o livro a tal dor. Não importa: as pessoas são livres até de usar quanta estupidez lhes der na veneta.
Sepultámo-lo no exacto 20.º aniversário da Revolução-dos-Cravos. Ominosa coincidência.
O derradeiro semestre de vida, passou-o meu Pai em arrastado sofrimento: qualquer coisa se desligara na rede cerebral – mas com dor permanente. A impotência de acudir-lhe exauriu-nos a todos. Valeu a força intransigente da senhora-minha-Mãe, que viúva se demorou viva mais dezassete anos quase.
Cabe-me envelhecer, tornar-me um traste – para uns, de carácter; para todos, de anoso. Mal nenhum ou especial: de triste a traste, vai uma vogalzita trocada. Tenho os livros próprios & os alheios à mão-de-inseminar, por assim dizer. Ao contrário de alguma gente, os livros nunca me/nos falham: são, literalmente, a palavra-dada. A minha pena é não ter tempo para todos quantos me falta ler ainda. Escrever, vou escrevendo este – que mal não traz ao mundo, nem bem, nem diferença, não sei bem.
Quando é em verso que me mostro prosaico, rio-me por & para dentro: que chorrilho de maluqueiras me acorre! Mal nenhum. O que é preciso é um gajo ir-se – a eles versos, ou coiso.
296
Pelo menos nesta página, alguém aquece a sala enquanto alguém na cozinha ultima as provisões-de-boca. O ar já ronrona à face do fogão-de-sala. Em taças diferentes, espargos, azeitonas, nabiças, esparregado-de-favas. Na terrina, sopa-de-tomate. Na travessa, vitela-com-massa. O alguém da cozinha é Jerónimo, marido de Francisca, que precisa agora de lavar as mãos, estabelecido o fogo, crepitando já a mescla de carvão, oliveira, pinho, desgrenhada caruma para acendalha. Harmonia. Pelo menos nesta página, escrevo, ou lêdes Vós, o que falta.
297
Acompanho discretamente danças, andanças & desandanças de personagens que no curso da existência tenho de algum modo contactado. Quase nunca pergunto. As mais vezes, contam-me. Esses dados entram-me na máquina, são processados, às vezes surgem transfigurados em alguma das tretas que escrevo, outras vezes esfarrapam-se na estranheza dos sonhos.
Com os anos, aprendi a relativizar com maior grau de firmeza. Claro que nem a tudo – algumas vulnerabilidades são-me tão próprias quanto os olhos com que nasci & os óculos que, já meio-velho, me comprei. Elas, vulnerabilidades (ou defeitos; ou fraquezas; ou vícios; ou descaminhos; ou o raio que as parta), integram-me. Não há que mentir.
Para vencer alguns instantes da finitarde, revi imagens que me são caras: Rilke & Cortázar foram dois rostos que procurei & encontrei. Entendei-me, por favor: afinal, hoje é (mais) um aniversário do passamento de meu Pai. Nunca é um dia fácil. Repõe-se-me em cena (sempre) o momento em que o meu Amigo Henrique dos Santos me telefonou, foi por ele que soube, sei bem que se esperava mas não poderia nunca deixar de ser um choque.
Ouvi a pura alegria da Música a sério – a Valsa n.º 2 de Shostakovich, por mor exemplo. Uma pessoa faz o que pode, como pode & quanto pode – quando, para sempre, se vê filha só de si mesma.
Sem comentários:
Enviar um comentário