06/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 211


211

Segunda-feira,
5 de Abril de 2021



Vozes persistem na organização mental
– Não quero que a tua mãe saiba disto –
Não só quando o sono se acerca, não só
Também em vigília à luz as vozes persuadem
São emanações do tempo em re-composição
Quantas pessoas há numa, querida?
Variam em filme os cenários, não a atenção
Como na reconstituição de um cenário de crime
Quem fez o quê a quem, onde, se possível porquê
Tal não faz de nós doidinhos, receptores sim.

A actualidade é feita de sopa, é um bem o tê-la
Reconstituída a paz gástrica, o pensamento jibóia-se
De cada instante a decisão arruma-se sem luta
Nunca mais temos dias como aqueles, Ramiro
O estrangeiro começa além do passo por dar
– O futuro pertence a Deus ou ao Diabo, senhor? –
Flagelado pela zina noticiária, o rebanho barrega
Mas na cama a pessoa atabafa-se & atassalha-se
Vozes percutem em si como poalha de chuva
Perto de tantos longes, quand’inda o sono a não viola.

Na mata restam ruínas da casa do Trinta-Diabos
É espectro de bruma como José do Telhado & Diogo Alves
Ei-lo de brandões acesos, um em cada mão, descendo a escada
– Vá-se embora daqui enquanto tem pescoço –
O visitante quase se torna transparente, atemorizado
– Não quero que a tua mãe saiba disto –
Nas noites de chuva, por não ter lareira, também t(r)emo
Então a alva faz-se violeta em madrigal na marquise
Os apetrechos quotidianos reclamam seu diário solstício
Bonita, poderosa solidão em miradouro pátrio.

Reitero não ser doidinhamente que, receptores, recebemos
Vozes como a de Leonor D. na livraria pombalense
– Pai, este livro é mesmo muito interessante, sabias? –
Como a do paterAvô dela dizendo a seu benjamim
– E o Trinta-Diabos trouxe as mãos ocupadas para não o cumprimentar –
Também a minha se calará, deixo-a escrita para que não de todo
Não de todo enquanto algum leitor saiba folhear catálogos
Alguém mediatamente futuro capaz de deixar-fazer-deixar-andar
Pequeno milagre da palavra-escrita, suméria & sumária
Pedra-de-roseta-dos-ventos-de-espanha-casamentos.

Persuasivas vozes alastrando tinta na sensibilidad’infante
O carteiro-senhor-Fernando assim para a senhora Alice Duarte
– É 15 de Setembro hoje, muitos parabéns, minha senhora –
E do pátio o marido dela, Fernando também, sorrindo
Assim era no tempo em que os carteiros eram vitalícios
Como os mendigos conheciam cada porta de cada família
– Sobretudo que a tua mãe não se inquiete com isto –
Julgáveis quê?, que um poema polifónico não seria legível?, mas é
Como daquela vez em 1982 em que fomos os dois de comboio a Aveiro
O Sénior & o júnior, aveiro-de-um-ataque-de-nervos.

Animais rebentados de trabalho, os operários de retorno a casa
Invernos & verões formigando a laboriosa insensatez de continuar
Por quatro tostões parindo alheios milhares de contos-de-réis
Alguns deles tentando perceber a engrenagem, desmontá-la, melhorá-la
– Nunca fui pessoa de pôr à borda do prato o que presta –
Desde que fizeram o açude, doidinhos nocturnam a caça à lampreia
Comensais de pensões a preto-&-branco chamam ouro à sopa de cada dia
E é que têm razão, há tanto quem precise mas não tenha
– Pediu-me em casamento na noite de Rainha Santa –
Quarenta anos depois é que fomos de comboio a Aveiro.

Rio-me sem som na cama desfeita, lá fora rosas ao luar
Ouço sem abrir a boca, digo coisas a mortos pacificados
– Pai, como prometido, não lhe disse nada, mas se calhar –
É bom ter por enquanto um por-enquanto, cedo se fará tarde
Tarde de mais para ser grato, acusar a recepção de tanto amor
Essa volta que demos pela mata, Sénior & júnior, a voz ainda silábica
Narceja em seu ninho próspero, cabrinha na erva azulada da matina
Tangerineiras que a eternidade devolveu a silvestres
Elas & a pintura dos grandes mestres
– O Trinta-Diabos não queria apertar-lhe a mão, o pescoço talvez –.

Subimos aos moinhos do Lorvão, ser filho é de curial adoração
– O mundo, ó filho, já estava feito antes de p’ra cá virmos, p’ra cá fica depois –
Rôlas sem caçadores devolviam ao ar a qualidade etérea
Falar com o meu Pai não era então de natureza funérea
Uma pessoa resignar-se não é uma pessoa persignar-se
Uma pessoa admitir-se não é uma pessoa genuflectir-se
Custe o que custar, uma vez há-de ainda falar
Palavra-rara é toda aquela que nos aumenta
A vulgar é fraca, nem sequer atormenta
– Fazes hoje vinte anos, a partir de hoje é um fósforo – .

De aparente novidade se mascara a velha
(Velha, qual for – civilização ou pessoa)
– Tens alguma coisa a ganhar que eu não tenha já perdido, querida? –
Dizei-me algo que Gregos não tenham dito ou Romanos decretado
Seis mil ou seis milhões em tempo-estelar é brincadeira
Quando ainda branca, a França deu-nos algo ainda
Quando já demente, a mãe erguia-se de noite para pentear-se
Esfreguemos em nosso rosto meus os erros sociais
Os erros sociais que outros nos malencaradamente cospem pessoais
– Que a tua mãe saiba tão-só quão bem lhe faça –.

A Cas’Amarela-de-Cimalhas-Verdes
’Inda surge bela de quatro paredes
Casa singular (mas multitudinária)
Q’um dia foi lar de muit’alimária
– O médico disse-me três meses, duro talvez um ano –
– Sobretudo que a tua mãe não saiba disto, com Trinta-Diabos –
Falsa lentidão, a do sol-poente
Que dá condição à humana gente
Fumemos cigarros com nosso conhaque
Vendo passar carros, todos de combate.

Laboriosamente fomos crianças, trabalhávamos p’ra tal sem no saber
A ardósia do Estado-Novo vindicou-nos Boa-Ortografia & Má-História
Eu venho para ler livros & para versejar memória
Que seja toda contar, sabendo ler & escrever
– O senhor saiba que o seu filho trata o Português por tu –
Isto é em 1991-Ano-Mozart
De poucas certezas disponho, sendo porém inabaláveis
As mais recorrentes, mais audíveis & mais amáveis
– Os médicos sabem lá, filho, são gente como a gente é gente –
Também se enganam, claro, mas raro é que para bem.

Falei com a neta de um rapaz que há muito é sepulto
O que dele em nome-&-sangue houver nela, vozes o digam
O rapaz morreu, já não faz sombra, merece indulto
Já nem os vulgares ventos vis o vilipendiam
– Ó Fernando, olha este gajo aqui a gozar contigo –
Ou então um sítio básico, sozinho devidamente, sem prestações
Um sítio com estante p’ra cereais, velhos jornais & Camões
– Podemos não ter escrito nada, mas a morte faz-nos livro –
A solidão tira-me de o ter sido tão júnior
Estou sénior ante ninguém, vão é o desejo & vazia, a plateia de senhores-ouvintes.


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Canzoada Assaltante