02/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 193 a 195 (conclusão do dia 30.3.2021)

© DA.



193

Os lutadores conhecem apenas o momento supremo.
Ar ou terra – outros limites se lhes não revelam.
Longe deles, cervos movem-se em relvado espontâneo.
Nem aviação suja o céu dos cervos livres.
Nas traseiras da escola, a contínua Eduarda fuma em paz.
Tem o homem no Luxemburgo, uma ou duas vezes ao ano o vê.
Os barqueiros cheiram o ar, sentem a água electrizada.
Está em risco o frete da manhã, carvão & madeira mormente.
Levanta-se cedo a moça professora, é o seu primeiro ano.
A mãe andou quarenta anos nesta carreira ingrata.
Crianças perpetuam a infância, não a si mesmas.
Intuem segredos, a vida adulta sonega-lhos quase todos.
Miguel Pedro & Ângela Cristina vão ao Tivoli, sessão das 15h30m.
Dão-se as mãos no escuro, são Fred & Ginger clandestinos.
(Quem me levaria a não escrever isto, a ser de utilidade social?
Quem me faria descuidar-me de versos, dar sangue aos domingos?)
Os amadores de teatro fazem o ensaio de primeira leitura.
A peça é de um húngaro radicado em Elvas desde 1953.
José Joaquim Souza Luiz radicou-se na Holanda em 1973.
É músico de rua quando pode, colhe tulipas para compensar.
Levam farnel de carnes-frias, fruta, chocolate, pão-branco.
São ainda meus primos, tanto ele como ela, afastados mas primos.
Penso que moram agora para as bandas de Penacova.
Terra ou ar.
E água eléctrica.

194

Rutger Hauer em VHS, naquele bar de boa espécie no Norton de Matos.
Gloria Swanson num café do Luso, certa noite de 5/9.
Raul Solnado, sozinho, dirigindo-se ao British Bar, talvez 1991.
Santos Manuel, em menino, perto do farol encarnado figueirense.
Mário Viegas no Teatro Paulo Quintela, casa-cheia nessa noite.
Os Irmãos Marx no Teatro Avenida, Gene Wilder no Gil Vicente.
José de Castro como rei, António Assunção como boçal ricaço.
Michael Caine naquele pub de Peniche à face da muralha.
Em Peniche também, Helena Lisboa, extraordinária criatura.
Meryl Streep à face de Guilherme Pais, Carlos Leite & Jorge Manuel em 1982.
Nicole Kidman na bruma eléctrica do Largo Pintor Gata.
Hurt & Hopkins a 1 de Novembro de 1981, quando o Pardal terminou.
Derek Jacobi na sala da Lameira do Saramago, muito cedo na noite.
Ruy Furtado ainda mais cedo, em paralela dimensão.
Já Santareno morrera (no ano anterior) quando O Judeu no D. Maria II.
Max von Sydow na praia onde morreu o Ruizito Alpha (mesmo ano de Bernardo).
Belarmino ali onde bebi cervejas com Peep Fernando de Alvalade.
Bibi Andersson na praia de Santos Manuel com João Perry.
Laura Soveral sendo amimada por M.ª do Céu Guerra fora de auto.
Luís Miguel Cintra dizendo A Margem da Alegria perante a viúva Teresa.
Marilyn, Cliff & Gable na indústria de enlatados para canídeos.
Buster Keaton trabalhando na ferrovia em que morreu M. Garrafão.
Frances McDormand a 11 de Fevereiro de 1983 em Coimbra, sexta-feira do nevão.
Bruno Ganz & Harry Dean Stanton & Billy Bob Thornton no deserto urbano.
E Francisco Ribeiro encenando Beckett, mesmo assim, Ribeirinho & Beckett.

195

Há um italiano chamado Sforza a trabalhar no meu teatro.
Não fomos apresentados, nenhuma necessidade para já de tal.
Cumpri o prazo, entreguei a peça dois dias antes do combinado.
Disse ao encenador e ao produtor que iria entretanto ao Norte.
É falso: fiquei em casa, mas assim o telefone faz ó-ó.
A peça é para estrear em Junho, 8. Não foi possível Maio.
O enredo é (mais) uma variação da esperança contrariada.
Sforza veio trabalhar na tradução para a produção milanesa.
Disseram maravilhas dele: experiente, lúcido, antivedeta.
Cri no que disseram mas não sinto que deva importar-me.
Devo ter umas três semanas por minha conta.
Proponho-me consumi-las estudando os Gregos.
É quase nada-de-nada, bem sei – mas é mais que nada.
Aprovisionei a despensa, o peixito morreu, não sei a quem dar o aquário.
Talvez devesse escrever a peça O Aquário Devoluto. É uma ideia.
Tenho bebido pouquíssimo desde que acabei esta. A sério.
Há papelada oblíqua do tempo em que bebia muito & sempre.
A lareira está limpa, a chaminé também, tenho fósforos.
Todos parecem recear o comportamento da protagonista.
Eu não a propus nem a ela me opus, receio bem ser apático.
Acho que me desinteresso de quase tudo no derradeiro ponto-final.
Dos Gregos, não. Sófocles é tremendo. Raio do homem.
Sforza deve saber mais dele do que eu, não me custa supô-lo.
Talvez tenha já voltado a Milão quando eu for à produção.
Se esta aguentar até ao Natal, faço a do aquário em Novembro.

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Canzoada Assaltante