29/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 299 - III

© DA.


299 - III

    Procedo a uma pausa quanto às vãs (venais também, talvez) revivescências expostas in I & II deste 299. Estou aqui a pensar. Condenado ao presente, isso sim. Isto não é a Friedrichstrasse, é outro sítio. Parece não ter morrido qualquer pessoa, em Portugal & nas últimas 24 horas, por causa da pandemia covídica. É boa-nova, claro. O meu Gato, alheio a rácios & a previsões, dorme esparramadamente em manta macia.
    De momento, combato certo melancolia cuja pertinácia me arranha há um terceto de dias com suas noites. É mosca interna. Sobraço ar. Não será hoje que me vou à Normandia a ver as praias do grande desembarque daqueloutro Junho, madrugada de 6, ano 1944. A verdade é que me não mexo nesse sentido – nem em qualquer outro que não tenha número de página.
    Tal como as infectas metrópoles de por-esse-mund’-afora, a tristura dispõe de vielas perigosas. A serenidade não tem receita fácil. É rara & preciosa como, digamos, o lápis-lazúli.
    Digo assim: Estou em obras.
    De reparação? De bot’-abaixo-&-faz-de-novo? De novidade?
    Um Bernardino Vicêncio houve ali na Tenente Valadim.
    Usou anos sem conta roupa cinzenta, desse tom que entristece sozinho.
    Julgo que era empregado-de-escritório num armazém de ferragens.
    Não tenho modo de apurar se deveras o era ou não.
    Sei que era damista de primeira-água.
    Frequentava os tabuleiros da sobreloja d’A Brasileira.
    (A Brasileira da conimbricense Ferreira Borges, não uma das de Pessoa.)
    Costumava vê-lo passar à tardinha, de cinzento sempre, talvez para sempre.
    Fui-me depois por outras rotinas, nunca mais o vi.
    É possível que seja vivo ainda, talvez algum lar-terminal o vá mumificando.
    Também pode ser terra mineral há anos, Olivais ou Conchada.
    Penso nele para não pensar em diversos assuntos meus.
    É uma simples – & táctica – nolição.

    Como frescos murais, certos sonhos cavernam-me a noite.
    Impressiona-me a lógica implacável das gravuras móveis.
    Esqueço-as despertando, pelo que me obrigo a fazer versos.
    Não preciso de me forçar muito, sei (ou hei) o como-dizer.
    Prefiro os versos aos desenhos oníricos, quase sempre medíocres animações.
    Na verdade, libero & delibero – ou crio; ou recrio; ou plasticino.

    Em diversa dimensão, imagens extrínsecas mostram-se poderosas.
    A capital do III Reich vista do céu em Junho de 1945.
    Ossadas de novo profanadas em valas-comuns.
    A Buenos Aires com Borges vivo andarilhando-a.
    O panorama muntheano de San Michele.
    O salão de O Baile de Ettore Scola.

    Onírico, lírico, verídico – tudo em mescla se consuma.
    Desenganai-Vos: muitos veneram ’inda a sepultura de Alois & Klara H.
    Quem não sente uma nostalgia inexplicável ante o mar & o lume?
    Ou explicável: se de um & outro somos feitos & viemos ab ovo.
    E dos Originais cá veio o rancho todo; o procaz Dillinger, a bela Nefertiti,
    o malogrado Scott, a amásia Maintenon, o vil Rasputin, a safada Safo.

    Objectos? Também. Definitivamente sim, também objectos.
    O canhenho de marroquim vermelho de Kees Popinga.
    O frasco-de-bolso de Scott Fitzgerald.
    A cafeteira azul de um baptizado em 1917.
    A cabaia de Eça.
    O chapéu-de-coco de Magritte.

    Um serão próspero, viveu-o Maurício Filholena (sim, o famigerado envenenador do Bairro Albuquerque) quando aceitou um convite para concerto-seguido-de-ceia. Foi Ademar Marílio, que então regia o Coral de Santo Eustáquio, a convidá-lo. Gastrónomo delicado & melómano arguto, Filholena não hesitou em aceitar a gentileza. O duplo programa incluía cantatas de Bach & amêijoas-à-Bulhão-Pato. Que seguramente se saiba, M.F. não havia ainda, à data de tal bródio melogastronómico, envenenado mulher alguma. De facto, a primeira envenenada era ainda juvenil à data de Bach-com-Bulhão. Quando o hediondo Filholena a vitimou, Eulália Vilhena já dobrara a trintena. Isto é consabido, é consensual, é consentâneo. Quanto aos bastidores dos horrendos actos, é bem mais a parra do que a uva. Cinco mulheres morreram de envenenamento por arsénico às mãos de Maurício F.: a sobredita E.V., Cíntia Musgo, Dália Valnegro, Orquídea Braz & Penélope Pastor. Todas louras-naturais, de olhos claros todas, todas com mais de trinta anos. Diferiam as suas origens: Eulália era natural de Matosinhos; Cíntia nascera na Índia (então) Portuguesa; Dália vira a luz pela vez-prima no Faial; Orquídea era flor desse jardim chamado Sintra; só Penélope era nativa de Coimbra (de Celas, mais precisamente). Maurício Filholena morreu de um tipo de justiça a que se usa chamar – lá saberá o Demo porquê – “poética”: espancado com tubos arrancados à canalização exposta dos chuveiros da penitenciária. Já postumamente, foi empalado com um desses tubos. Até hoje, sabe-se-mas-não-se-sabe quem o justiçou. Ou, vamos lá, o poetizou.

    Antes de retomar alguns fios (lassos mas laços também) de Junho de 1975, encaro como posso & sei a finitarde de Segunda-feira-26-4-2021. Escrevi encaro pensando suporto. Liguei uma das máquinas que nesta casa sempre configuram alguma companhia. Figuras desfilam, eléctricas, diferidas, feridas algumas também. Colunas de soldados trepidam praças emolduradas de populaça frenética. De perfil, um rapaz de bigode incipiente dá aparência de famélico. Outro tipo de colunas: desempregados em fila-por-sopa. Flúi uma espécie de torpor multitudinário, agora. De frenesi, zero. Lá voltaremos.
    Reciclam metal em massa, estilhaçam pedra.
    A consciência não pára nem apara o horror a tempo.
    E no entanto o horror naturaliza-se, chama-nos filho ou irmão.
    Sobem a pulso os mais videirinhos.
    Serão imolados os cordatos cordeiros mais ordeiros.
    E Deus em todas as bocas: como uma cárie inobturável.



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Canzoada Assaltante