04/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 203 & 204




203

Sábado,
3 de Abril de 2021


A senhora bibliotecária vai cada Agosto para a casa branca no litoral.
A casa é caiada de novo a uma semana de cada retorno da senhora.
No próximo ano, a senhora ficará de vez nesta casa da sua vida.
Reforma-se em Maio, trata dos papéis, volta de vez ao mar.
Não é pessoa de ilusões, a propósito de seja o que for.

Esta senhora está viva, tem as contas em dia, jantou fora com amigas.
Jantou fora com amigas dos anos liceais, gostaram todas do reencontro.
Algumas outras desses tempos mesmos já lá estão, coitadas.
Umas nos Olivais, outras na Conchada, outra pelo País.
As que sobram, obram no sentido de pelo menos uma vez ao ano.

A casa litoral é branca como a neve dos postais nórdicos.
O sol volve-a preciosa como giz de aprender a escrever.
É maneirinha, tem fogão-a-lenha, quintal atrás, nespereira.
A cama de ferro, no quarto único, é branca, ela também alva.
A casa da cidade é para vender, ainda vale algo de seu.

Por volta de 1983, a senhora bibliotecária teve & manteve uma aventura.
Foi com o bedel da faculdade de letras, cavalheiro malcasado.
Durou de Maio a Outubro, ele chegou a visitá-la na casa de Agosto.
Tal vela apagou-se na rentrée lectiva, quase nem de facto ardeu.
Ninguém soube nem tinha de saber, não caiu em a vulgaridade.

A senhora bibliotecária adaptou-se bem à informatização do serviço.
Desapareceram as máquinas-de-escrever, viveram as máquinas novas.
Os livros em papel resistiram, também eles, ao furor electrónico.
Os livros ordenam o mundo, são a melhor ilusão a opor-lhe.
Em casa da senhora bibliotecária não há demasiados, só os essenciais.

Também são poucas as fotografias, nas poucas paredes.
Viver não precisa de muitas coisas, só muito de umas poucas.
Uma casa caiada no litoral não é das piores.
Estamos em 2021, número esquisito, falsamente crescente.
A senhora sabe, não é pessoa de ilusões, tão-só de uns poucos livros.

O cavalheiro-bedel reformou-se há anos já largos.
Tem a mulher doente, pensa pô-la num lar-terminal.
Vai ver os jogos da Académica, faz ele as compras & as refeições.
Já não vai a tempo de ter uma casita perto do mar.
Nem pelo menos uma vez ao ano.

204

O inferno é criação humana, dúvida nenhuma.
Inferno tirante, há criações empolgantes.
Dedico-lhes quanta atenção posso d(edic)ar-lhes.
Sou remunerado em géneros: literários mormente.

O próprio horror, artisticamente tratado,
dá de si fortuna exemplar: por revelar
o avesso da bondade prática, dele antídoto.
Sabendo nós que – Há mais gente do que pessoas.

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Canzoada Assaltante