210
Percursos tenho feito em singeleza
a monte do que penso & vou sentindo.
Algum desamparo & incerteza
não obstam ao andar & ao ir indo.
Do exposto supra, é exemplo certa volta que dei ao frio muito são do Janeiro de há dez anos. Era por Coimbra, naturalmente. Um sol sem febre amanteigava zimbórios. Seriam as nove da manhã, na altura não anotei. Pegavam ao trabalho os lojistas do pequeno-comércio. Rumo ao hospital, ia sobrelotado o autocarro. Um barbudo escarafunchava o contentor do minimercado. Recordo ter-me apetecido desjejuar a carcaça lendo o jornal do dia. Fi-lo conforme o apetite. Na galeria em arcada, escolhi a pastelaria mais pequena. O jornal estava livre. Café com leite, empada de frango. Como desde sempre & ainda hoje-em-dia, comecei pela necrologia. Sempre mais homens do que mulheres – e sempre menos idosos eles do que elas. Passo a narrar no presente.
Saio dali devidamente restaurado. Já subo até onde a cruz preside à encruzilhada. Hesito: subo até à régia-afonsina via?, desço a augusta-maternal?, quê? Subo. Morou por aqui um professor meu. Apresso-me um pouco por me invadir um exórdio decassilábico, modo meu de sentir-me heróico. Desço a da cidra. Tomo café mais tarde, perto ali da igreja do carpinteiro padrasto. Tenho no bornal João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães, Daniel Filipe, Carlos Gomes (o controverso guarda-redes) & o Eça das Notas Contemporâneas.
Virá no jornal que, em menos de dois meses, a minha Mãe estará morta.
(Uso o verbo no futuro para que ainda não aconteça.)
Percursos tenho feito em singeleza
etc.
209
Hoje, domingo tido por peculiarmente santo, houve balbúrdia no andar de cima. “Essa puta de merda, essa merda de puta de merda!” – foi muito gritado, e repetido, no lar vizinho superior. A minha sesta ficou irremediavelmente destroçada, vendo-me eu forçado a retornar à literatura activa, esta.
Não sei a que puta se reportava a esganiçada de cima. Tenho de imaginá-la. Literatura imagina’c’tiva, pois.
208
Entretemos a tarde conversando sem pressa, vendo acontecer o remanso, o manso quotidiano alheio a glórias de papelão como a tragédias de fac’alguidar. Xavier diverte-nos com histórias de gajas. Álvaro cuspinha apartes escarninhos a propósito de tudo & mais alguma coisa. Cidálio come e volta a comer: frutos-secos salgados, batata-palha, croquetes, natas. Antero faz sonetos, naturalmente. E naturalmente eu faço nada, nem bem nem mal vão de mim ao mundo – ao contrário do que rosnam por aí certos inimigos-do-alheio.
207
Bento Emanuel Gomes Valente morou perto da Estação Nova uns trinta anos. Não ligou a artes que não fossem a dele. E a dele era fotografar minúcias particulares de Coimbra: monturos de lixo, cadáveres de animais atirados para baldios, sinais de trânsito vandalizados, calçadas desdentadas, domingos esvaziados como lençóis solteiros. Bento, tal como Camilo, morreu do vírus-chinês em 2020. Bento, a 12 de Outubro, uma segunda-feira. Camilo, a 13.
206
Camilo António Nunes Morato morou perto da Estação Velha uns trinta anos. Recolheu & salvou as produções escritas dos poetas (muitos então havia) daquela zona da Cidade. Publicou, delas, uma selecta de boas duzentas páginas. Para mim, o volume é tesouro. Nele surge pela primeira & derradeira vez a lírica tão ifigeniana de Ifigénio Barreiras Pacheco, o localmente célebre Palhinhas. Copio & cito, de Ifigénio (op. cit., pp. 83-84):
Olá, meu gato matreiro, fiel depositário
de dias meus perdidos como os de todos.
Que o vinho vosso nos rode a rodos.
Olá, meu gato-rato, meu calendário.
Santo sol, deus sozinho, dá-te na Lua.
Perto daqui, lixo no chão da triste rua.
Adeus, gato compincha, meu só amigo.
A bem ou a bem, sempre comigo.
205
Domingo,
4 de Abril de 2021
Elisabeth/Roberto/Ivo/Capela tocaram no Café Santa Cruz para pasmado fascínio da plateia de tomadores de absinto. Quarenta minutos acústicos para sempre na retina auditiva daqueles felizardos entre que em boa-hora me incluí. Estavam lá também o Lelo Bebé, o Damasceno Cardoso, o Jorge Conceição, o Caniço Ausendo, o Cajó, o Tita, o Zito Jaime, o Al Fredo. E outros que não devo ter conhecido.
Elisabeth, voz; Roberto, guitarra; Ivo, percussão; Capela, clarinete-baixo. Comprei a cassette do grupo no final. Tenho-a usado muito nestes 37 anos. Penso mandar digitalizá-la ou coiso como agora se diz.
Elisabeth, de Torre de Moncorvo, veio para Coimbra estudar Direito; Roberto, de Santa Leocádia de Briteiros, também veio para cá licenciar-se, mas em Medicina; Ivo era funcionário dos Correios, ali ao pé do Mercado; Capela era monitor de ginástica geriátrica num lar, julgo que do Montepio ou cois’assim.
Fui eu a deixar Coimbra no fim dessa década. Eles deixara-se de tocatas, profissionalizaram-se, constituíram famílias, apagaram-se no anonimato da sobrevivência. Eu também, não há por aqui grande aí por onde ir.
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