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Segunda-feira,
19 de Abril de 2021
Mãe & filho numa área-de-serviço aberta 24/7.
Comeram alguma coisa, estão em viagem, descansam um pouco.
Chegarão pela alva à casa a que se dirigem.
É habitação com propriedade: olival, vinha, pomar, pecuária.
Parte da casa está habitável, a outra precisa de restauração.
A mãe já não tem marido, o filho já não tem pai.
Decidiram voltar à casa de origem, viver nela o resto.
Podem fazê-lo, venderam o apartamento na cidade.
O casal caseiro (toda a vida) espera-os para afinar o acordo.
Pode ser que a quinta dê para todos, pode ser que sim.
À face da hidroeléctrica, a hospedaria de índole familiar.
Familiar deveras: a sala-de-refeições, o louceiro velho, o velho aparador.
Talher de ar usado pelos dos retratos na parede, comida de factura avoenga.
Comemos ali um arroz-de-galo muito bom & muito barato.
Foi há muitos anos, ainda eu tinha família completa.
Era pela finiprimavera de um ano mais simples do que estes.
A barragem ainda funciona, duvido que idem a tal hospedaria.
É recordação algo melancólica, esta, como tantoutras minhas.
Dá, enfim, para confecção de uma décima versilivre.
Poderia dar, enfim, para bem pior produto, pior sem-saída.
Dinheiro. Dele se fala. É assunto ubíquo, mais ainda do que Deus.
Não é novidade, bem sei, mas julgo que tem vindo a piorar.
Tenho conseguido algum alheamento, não muito, não suficiente.
Existe-se mui condicionadamente, artificiosamente emaranhado.
Espectacularidade pirosa agrava a clareza, obsta à razão.
Por uma moeda de euro, comprei há dias um livreco velho.
Foi escrito por um franciscofrancófilo, se bem me entendeis.
Penso que é de 1943, interessa-me ler também o nocivo.
Aprende-se com a malevolência, nada duvido de tal.
Os maus livros também ensinam, por contraste embora.
Referem alguns (já poucos) certo rapaz que em vida logrou fama.
Alguma coisa o dito moço sofreu para conseguir algo de seu proveito.
Cruzou as décadas do século anterior a este que respiramos.
Diz-se ter sido ele a plantar em 1940 um carvalho viçoso ’inda.
Li certa ocasião um opúsculo que o denunciava como infame plagiador.
Tal, todavia, não impediu que eu siga lendo os livros do rapaz.
Em diversos apeadeiros da minha viagem o hei feito sem pressa.
Julgo que a primeira vez terá sido por volta de 1978.
Certo é ele ter visto & vivido & escrevisto & escrevivido muito mundo.
Morreu quando teve de ser – mas os livros dele por ’í andam ’inda.
Mesclam-se-me em libreto itinerários individuais com destinos colectivos.
A importância de uns & outros está no que usam & ousam ensinar.
Assim, António de Jesus Barracuda, marido & pai mal-amado:
& Wilhelm II, maneta teutónico ostracizado de luxo na Holanda.
A estadia africana de Barracuda em solo colonial-bélico-africano:
& as consequências do Armistício/Versalhes 1918/19.
Parece que o grande Poeta Ruy Belo nasceu no dia em que ardeu o Reichstag.
Aventam alguns que Cervantes & Shakespeare morreram no mesmo dia.
Faltavam onze meses para o nascimento da minha Mãe: o putsch de Munique.
Penso seriamente que as cerejas se entregavinham insidiosamente.
Filho & Mãe
etc.
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A caminho de onde brevemente lapijo estas linhas, vi uma jovem papoila rompendo. Era sinal de que a terra de que proveio não foi sujeita a agroquímicos invasivos. Agora onde estou, à face do céu que fenece, andorinhas arabescam, rapidíssimas, o derradeiro azul da jornada. São quanto me acrescenta, sacanitas: andorinhas & papoila, ignorados milagres que não rezam, não oram, não imploram, não mistificam, nem pagam IRS a fideput’algum.
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Obra-de-edificação, não faço – nem (de) moral, nem (de) construção-civil. Não cincarei nem mal nem caramunha.
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