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Quarta-feira,
31 de Março de 2021
Março acaba-se a si mesmo sem ajuda externa. Há que seguir vivo. Sem pressa, cada hora vibra no bronze etéreo da duração. Fui (e já vim de) ver o meu Irmão.
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Quinta-feira,
1 de Abril de 2021
Estela Inácia de Rosa-Assis, filha do major Décimo Deusdado de Malta Assis, que fez a Flandres com esquecida bravura. A senhora Estela pontifica ao alto de sua mansarda pintada a rosa como o seu matronímico. Tem 94 anos, idade que exerce sem a indignidade da autocomiseração. Senhoria da loja aberta no rés-de-chão, recebe ainda uma pensão mínima de sobrevivência. Basta-se a si mesma comendo pouco & bem. Dorme a sesta sem susto.
Penso na dona Estela no curso desta quinta-feira sem novidade maior. Vejo-a em seu alto, embora a saiba morta há bem quarenta anos. Não faz mal – à mesma a miro de cá baixo, curiosa da repetição implacável do mundo. A mansarda abre-se ao ar da praceta que oito plátanos escoltam. Tem 94 anos, tinha 54. Eu, dezasseis. Em menos de quarenta anos doravante, estarei morto também – sempre quero ver como há-de Estela ser lida & tida por viva.
(Talvez eu não esteja a contar bem. Tal eu não saiba contar bem. Talvez eu não queira contar bem.)
Vou ver Estela Inácia amanhã. Ela é filha do major. Ela prometeu-me o diário do pai: Soldado-Solidão, Flandres, 1917-1918. Nunca houve possibilidade de publicação. Estela quer que ao menos uma pessoa de fora saiba coisas que a História oficial ou não sabe ou não quer que se saiba. Estou muito interessado.
Mas ela morreu há quarenta anos. Eu não duro mais quarenta. Eu vou, ela já foi, nenhum dos dois volta(mos). Muito solda a solidão.
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Sexta-feira (dita Santa),
2 de Abril de 2021
Soube hoje alguma coisa mais de Phoebe Snow (1950-2011). O mesmo quanto a Al Berto (1948-1997). Deixaram coisas que, figuradamente, é bom ter à mão mental. A infinitude de tal posse, figurada embora, faz bem à recatada pessoa a quem o bem-feito sempre remunera sobremaneira. E Harold Budd (1936-2020). E Lothar Wolleh (1930-1979). Se em estudioso recato as procurar sem pressa, são as pérolas a encontrar a pessoa. Nesse ano da morte do fotógrafo Wolleh (a 28 de Setembro), a banda Yes deu espectáculo na Philadelphia Arena (a 21 de Junho). Foi pouco antes da desagregação do melhor elenco de sempre daquele grupo: Jon Anderson, Steve Howe, Chris Squire, Rick Wakeman & Alan White. O baixista Christopher (Russell Edward) Squire já não respira (1948-2015) – e nasceu no ano de Al Berto. Não faltam pistas correntes. Não enquanto se vive volitivamente. Hoje tem sido caso disso.
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Pessoas dão-se ao manifesto em qualquer partida do mundo.
Entre elas-outras & aquela a que cada uma chama Eu,
uma espécie de fosso (que é largo, pantanoso & fundo)
reflecte em glauca bruma uma imitação de céu.
200
Elsa foi operada, lipoma removido, alívio imediato.
Tadeu obteve da França certidão de cidadania.
Pulcra planeia fazer um arroz-de-pato.
E Josué tem saudade de um pires de aletria.
Nelson adere ao crédito por smartphone.
Sílvia prefere barbudos soezes.
Teotónio repugna aos pais da Ivone.
E Telma só compra nos bazares chineses.
Noémia é a flor da flora portimonense.
Florbelo é gay e é calipolense.
Duques de Lafões não há já no mercado.
Mui da boa fruta vem de ser alcobacense.
O teu tempo é teu, o meu a mim pertence.
E assim, minha Hortense, é o soneto acabado.
201
Interessa-me como algo é dito.
Não a coisa – mas como ela é posta.
O resto é menos meu fito.
Cada um vai pelo que gosta.
202
Cavalheiro de jaqueta azul-marinho vai ao hospital ver a mãe, dar-lhe conta das minúcias do bairro, saber do internamento, apurar o tempero do amor que os une. Isto multiplicado muitas, muitas vezes: vestir de azul, ter a mãe doente, amá-la & ser por ela amado.
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