13/04/2021

PARNADA IDEMUNO - 237 a 242


237

Segunda-feira,
12 de Abril de 2021

Deuses nenhuns emaranham por aqui o entendimento
Há por aqui liberdade até de erro, assim tem sido sempre
Áridos brejos não obstam a palavras corredoras quais cavalos
Senhoras claras regem a matéria de que fogem os sonhos
E no entanto é atrás da música que se vai cativamente
Algo nos torna, a cada um, única possível gente.

238

Arautos, bardos, corneteiros, declamadores,
entusiastas, facundos, gonorreicos, horticultores,
ínclitos, javardos, latrinários, mediadores,
numismatas, olheiros, pendentes, questores,
rabiscadores, sicários, telepatas, ulteriores,
verborreicos, xaroposos & zoadores:

Senhores, temos todos direito à vida
Vamos todos direitos à morte, senhores.

239

    Saindo esta tarde um pouco, dei por mim achando no chão um precioso cêntimo de euro. A massacrada moedita (riscada, amolgada, pisada, perdida & esquecida) será suficiente metáfora do coração de muita gente – do meu é que talvez ’inda não tanto assim, tenho bem tempo para me achar em perdido chão.

240

Caia a noite onde se levantou o dia
Rode-se em torno do Sol enquanto que rodar houver

Cidália das Neves + 119 pessoas despedidas
Faliu a fábrica, ninguém de cima vem explicar
Trabalhar em vez de roubar parece má escolha
Mudam as lâmpadas mas a escuridão é a de sempre

Cega-se a maralha de coruscantes consumos
De plástico ao sol passeiam ao sol o sorriso
Muitos dão de si sob os viadutos, faça-sol-caia-chuva
Outros nem enlouquecem nem medalhas peitam ao dez-de-junho

Não é fácil estar vivo pensando-se na vida
Pensar a vida não é o mesmo que pensar na vida
Expiatório negócio é viver de bolsos furados em calças rôtas
Folias pastorais, só em verso – para menos que para mais

Caia a noite onde
Etc.

241

    Prefiro ver palavras adentro, abrindo no quarto escurecido estes olhos que dos óculos descansam, agora inúteis as cangalhas pois apagada a luz-cabeceira. Vejo aquela pessoa reiterando a noite em silhueta no terraço da casa emprestada. Espécie de semiluar argenteamente algodoa o jardim, aquém, & o bosque, além. Esta é a casa na paragem mais estreme da aldeia. A povoação mesma, aliás, é esparsa já, não tem propriamente núcleo, centro, imo. Sete anos por aqui se demorará esta pessoa. Vê-lo-á a mulher que lhe traz mantimentos & lhe arruma as coisas domesticadas.
    Profiro vê-la – a essa pessoa para além de qualquer aquém. E profiro bem.

242

    Bem trajados cavalheiros dispersam-se pelo parque de estacionamento da igreja protestante, pouco depois da cerimónia fúnebre em que louvaram & começaram esquecendo um chefe-de-secção nem bom bem mau que com eles trabalhou. Atentai: alguns destes senhores tão bem vestidos são de importância, aliás tão mais influente quão mais discreta.
    O de sobretudo azul-trovoada & gravata cinza-negra é Gabriel George d’Aves Olmo. Nada lhe é alheio no submundo editorial-jornalístico. Frequenta almoços-de-trabalho com secretários-de-Estado, jantando no mesmo dia com o director de jornal a usar como papagaio propício.
    O de écharpe de seda grená listrada a anil é cunhado do anterior. Chama-se Nicolau Jacques Séneca Brandão. Tem uma fortuna em bólides na garagem. Roubou quanto tem. Não se lhe reconhece uma bondade. Trafica com a tropa: comida, combustíveis, nomeações, demissões – e, claro, armamento.
    Os dois anteriores respondem ante um velho que há muito não sabe quanto tem – mas que nunca se esquece de quanto pode. Chamam-lhe Farol – por sinalizar tanto com luz como, de preferência até, com trevas. É Gualdino São-José Rojo. Há mais de vinte anos que é velho.
    Podeis demandar da verdade do que digo. Peço-Vos que prefirais a verosimilhança à oleosa viscosa fugidia verdade. Mais V. não digo por ora: acerca-se de todos nós a meia-noite – e, sendo isto um jornal, sim, mas literário, é preferível ir por o dia-a-dia sem nem grandes ondas nem estrepitosas arrecuas de maré.


3 comentários:

cid simoes disse...

http://voarforadaasa.blogspot.com/
Há tipos a quem não se pode dar muita cúnfia, assim que podem abusam, mas por vezes mesmo sem querer entro no gamanço. É uma doença. Desculpe.

Daniel Abrunheiro disse...

O senhor ponha & disponha. :)

Daniel Abrunheiro disse...

Vingo-me acrescentando o voar fora de asa aos links do canil...

Canzoada Assaltante