21. OUTRAS MARGENS DA FEIRA
Leiria, quarta-feira, 20 de Abril de 2011
O Tempo é o Rio – metáfora sempre viva e justa sempre. Cada um está desta Margem – e todo o resto de todo o mundo, da Outra. Não difiro, estou numa Margem do Rio, assisto ao que se passa na Outra. A ponte que tento estender de Margem a Margem é a minha literatura. Cada um de nós é à margem que vive. A feira é sempre da Banda-de-Além. A minha colecção de quartos arrendados e de mesas para dois só com um comensal demonstra-me-vos que o Rio é lúcido e é sombrio – porque a Passagem corusca girafarândolas nas trevas. Se costumo receber sinais conformes da Outra Margem? Sim. Raras vezes, todavia, conformes (ou proporcionados) aos emitidos. As coisas são assim. Mas ainda assim: uma leitura de vozes embalsamadas, por exemplo. Por exemplo(s): Kafka escrevendo a Carta ao Pai, L.P. Hartley na pele de Leo Colson em The Go-Between: Outras Margens da Feira. Num café de Leiria, as vozes deles tão activo-actuais como o espantalho-múmia presidencial das bananas patrícias que neste preciso momento tasquinha sílabas de cuspo no telenoticiário. Maudsley, Ottle: gente por escrito tão real como a falante. Máquinas cheias de paciência urdindo (esperando) a deterioração da espécie (dita) humana. Franz, que não é capaz de casar-se. Jenkins e Strode caindo do telhado do internato. As irmãs de K. trucidadas pelos nazis nos economatos de gás da WW II. Brandham Hall. A leiriense Avenida Combatentes da Grande Guerra (WW I): nela, uma catatua a dizer – Isto está tudo em sténdebái – de telemóvel em riste-rosto, na Margem Oposta a este caderno. Trabalho nisto. Valquírias nibelungas, Marias-das-Conceições: de Wagner ao Mercado da Ribeira, um ininterrupto Fluxo-Fluvial. Extinção de postos de trabalho: onde ouvi já eu dizer isto? As fontes patronais (nem já) comentam. Gente de joelhos virados para trás a pé para Fátima. Triunfos da comes-cosmético-dietética. A sempre procrastinada cura do cancro. No meu caso, a pueril alegria decorrente da posse de um lápis novo (fresco, pronto, pragmático, portátil). Às 13h35m de uma quarta-feira de Leiria. Sem porquê nem paraquem: isto apenas: um Lápis atirado ao Rio.
*
Não foi a primeira vez. Ontem à noite, numa casa que assumo a prestações psíquicas, reparei na profusão de objectos mínimos que, dispersos por vontade (deles) própria, substituem o ser seu pretenso proprietário: uma tampa de plástico azul órfã da garrafa de água mineral que embocara; uma litografia fixadora do inverno norueguês; um calendário de bolso do ano 1991; um tapete de cor neutra vincado de pés insones, um azulejo com narceja nidificando invisível cria, uma chávena para café sem café dentro, um rasgão de papel agarrado por íman à porta do frigorífico em lista-mnemónica de compras (leite, vinho, margarina, cenouras, esfregão da louça). Um dia, a noite: um dia, a noite imporá a última vez.
*
Em deriva vespertina pela Leiria de hoje, aprendo um nome de árvore: Catalpa. A nublação ganhou ao Sol, é normal que uma pessoa se pergunte que se lhe vai ser da vida. À beira do Lis, que a muita chuva dos dois derradeiros dias tornou barrento, cinco mandarins machos (belíssimos) patrulham o que se passa. Decidem investir na natação, ei-los em linha esquerda-direita olhando tudo, tudo lhes sendo interessante, por comestível ou perigoso – como a vida de uma pessoa é comestível ou perigosa, não raro ambas as coisas à vez mesma. Pombas etc. Pessoas etc. O (nem muito, pena) arvoredo sempre compensa como e quanto pode o apagão do dia. Saudavelmente imunes a elucubrações que tais, as crianças praticam sua jovial esquizofrenia: gritam, correm, aventuram-se – e são, sem no saber, tão naturais quão a patrulha de patos e o lixo que as bestas urbanas abandonam a um metro de chão do mais próximo contentor.
*
Alguma nomenclatura comercial e afins de Leiria à guisa de, cansando mão e lápis, amortecer a já não pouca angústia da tarde nublada:
Estofos Ferreira; Américo Órfão Médico; Pastelaria Santos; Casa Fundão Retrosaria Tecidos Lingerie; Ourivesaria Brilhante; Restaurante Porto Artur; António Macedo Solicitador; Casa da Costura Geninha; Casilar Cortinados; Lembra-te de Mim Casa e Decoração; Assuka Restaurante Japonês; Hostel Residencial; Predial Leiriense; Ourivesaria Leiriense; Foto Paris.
Nisto, a volta recolectora das firmas é mandada cessar pela iminência de um aguaceiro mais. À passagem, não surpreende (melancoliza, mas não surpreende) que também o comércio, à imagem da tarde e semelhança do céu, (a)pareça tão nublado: ninguém nas lojas, meia dúzia de ociosos e outra meia de aposentados nos cafés. Por ser em andar superior, não pôde ser verificado se o dr. Américo Órfão tinha ou não pacientes, ou se alguém solicitou alguma coisa a António Macedo, ou se alguém em Casa se Lembrou de Mim de Coração.
*
Ancoradouro breve de mármore, este degrau
sobre que assento roupa e corpo.
Estuário sem compromisso nem diferença: como
eu, como nós todos. Passa-se isto numa cidade
indiferente e com mais ou alguém comprometida
que com a passagem, que em mármore foi já vida.
*
Sem som nem cor como nos sonhos,
como quando um inesperado aroma
acorda uma memória afectiva
(um corpo, uma comida,
uma manhã no mar extinto
da extinta infância, redoma
da perpétua neve de esferovite
um dia finalmente branca
no cabelo, cor finalmente soando,
cheirando).
Assim como (a) cada pessoa,
má seja ela como boa.
*
Enquanto cada corpo (cor, pó) for
cada pessoa, teremos contemporaneidade:
idade com tempo: corpo-a-corpo.
Encanto ceda o corpo a igual pó
que ele: mesmo que a mortos amando,
como a filhos ao contrário.
*
De muitos cardumes fui já
transviado peixe raso.
Domesticada(s) nas torneiras,
a água dos rios / as águas do rio
perde(m) o viço, não a essência.
*
Derivando hoje pela cidade des-Lis-ante,
quis perguntar-me quantas coisas
desconheço.
Nasceram-me cravos nas mãos.
É o que acontece a quem ousa
contar estrelas.
*
Não quero agarrar as aves que vejo e me vêem.
Toco fortuitamente o tórax das árvores.
Toco e agarro algumas palavras que os outros usam da minha Língua, gosto de reorganizá-las em diademas novos, frescos arranjos florais que de outro modo se dissipariam como árvores e aves que tais.
Exemplos:
Está tudo / ao contrário / é o quê / é uma coisa.
Uma caixa / não tem / respeito / leva-o.
Vai-te catar / Jesus / primeiro / daquele lado.
Estou sim / não vou / que me deste / agora.
O velho / hum? / meu Deus / falou.
25. A GENTE NÃO
Leiria, terça-feira, 26 de Abril de 2011
A gente não faz mal a ninguém, apenas se mantém viva nos pingodoces entre frascos de mostarda e embalagens de fraldas para os filhos dos outros.
A realidade não ofende, bate é à porta com insistência de cobrador, a gente conhece outros corpos geralmente à base da mesma religião e do mesmo alterne.
O rapaz que fez de corno serôdio na Kananga do Japão faz agora de outro gajo, é preciso entreter os velhinhos na terminação dos lares, é sempre tão bonito e bom e giro e benigno tê-los secos e caladas nas antecâmaras de espera do Hades, do Tigre, do Eufrates, do Mondego e do Lis.
Sustém a gente os arames com que atilhamos a circunstância silenciosa dos cafés à tarde, o Rio dá-se a bancos de areia sobre que, sôfregos, sufragam os peixes suas vilegiaturas ribeirinhas.
Mas nem por isso a gente lhes quer mal, tudo vai de vivermos sossegadinhos nos pingodoces, as marcas brancas nem ficam nada atrás das outras mais caras, as de marca, de marca como os cães de apartamento que os bancários levam a cagar nos passeios pela tardinha-crepúsculo da pobre burguesia sem Cervantes nem Nick Cave.
Sim, a gente não.
2 comentários:
Interessante metáfora e justa também.
Inúmeras vezes os sinais recebidos não são conformes. Creio que tenho problemas de comunicação...
Desde que o Quim jorge me deu a conhecer o teu blogue que sou um visitante diário.
É com imenso prazer que leio e releio o que escreve.
Uma simple questão... quem escreve assim não deveria publicar em moldes mais tradicionais?
Talvez, Albino, talvez devesse. A ver o que dá. Obrigado pela tua atenção, que me gratifica muito.
Enviar um comentário