34. LETRAS PARA MÚSICAS
Coimbra, terça-feira, 17 de Maio de 2011
Ínclita luz por um ar de trovoadas
abrange até os farrapos dos sonhos sós.
De natural maravilha, as ansiadas enseadas
fazem pandos arrais de todos nós.
Peculiar, grácil, até obsoleta quase,
trigueira, fria, a frágil fonte
mana das profundas que, na base,
se estendem ao sustento do horizonte.
Esmerado esmeril talha a pedra da hora,
o mais é ser vivo e ’star e nunca ir embora.
*
Os meus assuntos são quase neutros, indolores quase. Além dos homens e das mulheres, interessa-me sem doutoramento ali aquela oliveira de cabeleira de avó, acolá aquela casa vazia com ar de cão aguardando os donos.
Tenho lido pouco e olhado muito. As jornadas sobre-e-justa-põem-se em conformidade com a ampulheta mental: que da cabeça tomba ao coração, esmigalhada a areia da passagem.
Uma rola, uma pomba, um melro, um pardal: unidades do Todo-Um, trepidações surdas do Grande-Voo, factos plumitivos não estéreis, que por penas escrevem, escrevoando.
Os meus assuntos nem a mim dizem respeito quase: aguardo ao amado balcão a trovoada que a oriente se junta e adensa – e parece até que pensa.
*
Só é vã a vida, não a necessidade de pensá-la. Um chão de pó de tijolo, a bossa ornitológica do peito da mulher, a impermeabilidade da couve à chuva, o mercúrio rolante das feiras populares tão apensas à depressão, a fábrica abandonada, saqueada, roída e ruída, um frasco guardando para nada o xarope da Mãe ida, pés de crianças azuis filtrando uma piscina, bebedores em solilóquio balcões-a-frio-noites-a-fio, dálias gladiolando estreliciamente roseirismos, tudo isto certa tarde de incerta terça-feira, em Coimbra, pela certa.
*
Eu era das mulheres a vã criança grande,
não meus os aposentos, nem elas afinal.
Algumas tinham casas com quintal,
outras fenestravam-me, vã de
todas elas mais filho que homem.
Passou-se isto era eu mais jovem.
Ser-se marinho não é ser marinheiro.
Disse-m’ uma um dia: – Daniel Abrunheiro,
as lojas não vivem de versos,
os filhos não vivem de versos,
as fábricas não vivem de versos,
os amores não vivem de versos,
os cafés não vivem de versos,
os bichos não vivem de versos,
nem árvores nem flores vivem de versos,
e disse-lhe assim: – Minha querida,
então não vivem.
Sou ainda a vã grande criança
que tão nada tem, Mãe,
quão a tudo alcança.
*
(O que procuro:)
Certos olhares que tornam azul o ser visto.
Certas cabeleiras em cascata de luz-sombra.
Esfarrapada cal de casas em colina-longe.
A sossegada ânsia do mar-a-sós.
(O que encontro:)
O nácar negro do palato do cão.
O limoeiro fazendo-se ferro ao frio.
A desactivada ferrovia para nenhures.
E um pacote de açúcar sem colher nem chávena.
*
(Uma música:)
Mancúspides selaminam ao ocaso
Ao acaso hemistíquios se corroem
Doem nas céspedes o grão e o azo
Muito concorre a morto o vivo homem.
Flamínias não deslevam o trazido
E toda se jacinta a impureza
O mal não é a morte é o ter vivido
De costas para a vida com certeza.
Os reflorões ourives marsupiam
Daustrálias in-remotas sem remédio
Então estão elas tristes e nem piam
E nem repiam se lhes dá o tédio.
Dancecafetaria-me qualquer dia
Rimbomba a pomba romba toda chumbo
O gumbo é fervido-ferveria
Cadeira executiva em nave-jumbo.
Silbertas lanceolam acidúricas
Té risca de filete alvasino
Tomai cuidado cuco do menino
Às vezes dão-m’ assomações fúricas.
Sem cospe não retorque alfa & geme
É estreme o saudosismo-pascoaes
De manhã é quando a mão-copo treme
Reteme leme-leme chovendo mais.
*
Talvez te não interesse agora-ou-já-ou-nunca o mural a fresco de quanto te concorro em tinta permanente. Acho isso perfeitamente natural: há que ser normal, moral e de Portugal.
Mancúspides selaminam etc.
*
Penso em acasalamentos fornidos pelas agências oficialíssimas de propaganda-tosquia-que-se-faz dia:
Rommel / Montgomery
Bush Pai / Bush Filho
Jorge / Mécia / de / Sena
Figueira da Foz / Buarcos
Lufapo / Estaco
Luftwaffe / RAF
Cesário / Pessanha
Sá Carneiro / Freitas do Amaral
Sá-Carneiro / Fernando Pessoa
Mãe / Pai
Atlético Clube de Portugal / Clube Oriental de Lisboa
França / Indochina
Bélgica / Congo
Scott / Amundsen
Gungunhana / Mouzinho
PedrInês
Rainha Santa & Vila Lemos.
*
(A mão da mãe do meu menino
em o seu menino pousa, lousa.)
*
(Ele chega ao quarto-casa, as coisas esperam dele o toque absorto, o nado-nada-vivo-morto.)
*
Acaba-se de si mesmo o dia-órbita,
já a leve-tule-brisa se cortina.
De si a vida é madeira & térmita,
que lhe juro que é – e é, menina.
35. F. DA M.
Adões (Coimbra), sábado, 21 de Maio de 2011
Aqui estou, cá perfeitamente sinto
a força pressurosa
(pressa, rosa)
das coisas.
Sinto-me-te.
Sabes, a mente dentro,
toda a noite.
Sou um homem sem Mãe.
Ninguém pode pelas ruas dizer-me
ou amar-me
ou chamar-me
filho da Mãe.
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