29. ALGUNS PASSOS, ALGUMAS SOBRAS DE SOMBRAS
Leiria, sexta-feira, 6 de Maio de 2011
Sou os passos que dou, quieto embora.
Versos como estacas prendendo a lona
do circo-coração, quanto posso opor
(ou apor) à usura da realidade.
Toco, por exemplo, as árvores como
a animais a quem um afago não
causa moléstia – e o amor que lhes
tenho, tal amor vem de uma clarividência
que a tantos outros cantos da minha
vida tem faltado – peço-te que isto
credites como vero, que o tempo só dá
para que tudo se volva nada, como
passos embora, quietos, dados.
*
Ele fez da vida mesma uma tipografia
em cujo imo as jornadas soletram
as matérias verbais da passagem:
ânsia, bonomia, cariz, derivação,
entrega, formosura, gelo, hombridade,
ida, junção, Leonor, mocidade,
nunca, onda, Portugal, querença,
retorno, sempre, Teresa, urbe,
vinho, Xelinha, zona.
*
Se nos vires passar, cuida que somos
pessoas como todas as outras: sombras
que demandam a claridade estival
dos rios que dão de beber aos bosques,
flores oncológicas, digo, ontológicas que
o crepúscul’ocaso torna carentes de
alvorada, animais civilizados à força
pelo uso da gramática e da horta,
sombras, sombras: sobras de sombras.
*
Terei sido quando não for já.
Como esta mosca tacteando o frigorífico:
silhueta invertebrada de si mesma,
num lapso chegou, nada não é já
quem foi, mais não voo-será.
Sem comentários:
Enviar um comentário