12/05/2011

Rosário de Isabel e Dinis - 29 (fragmento)

29. ALGUNS PASSOS, ALGUMAS SOBRAS DE SOMBRAS

Leiria, sexta-feira, 6 de Maio de 2011

Sou os passos que dou, quieto embora.
Versos como estacas prendendo a lona
do circo-coração, quanto posso opor
(ou apor) à usura da realidade.

Toco, por exemplo, as árvores como
a animais a quem um afago não
causa moléstia – e o amor que lhes
tenho, tal amor vem de uma clarividência

que a tantos outros cantos da minha
vida tem faltado – peço-te que isto
credites como vero, que o tempo só dá
para que tudo se volva nada, como

passos embora, quietos, dados.

*

Ele fez da vida mesma uma tipografia
em cujo imo as jornadas soletram
as matérias verbais da passagem:
ânsia, bonomia, cariz, derivação,
entrega, formosura, gelo, hombridade,
ida, junção, Leonor, mocidade,
nunca, onda, Portugal, querença,
retorno, sempre, Teresa, urbe,
vinho, Xelinha, zona.

*

Se nos vires passar, cuida que somos
pessoas como todas as outras: sombras
que demandam a claridade estival
dos rios que dão de beber aos bosques,
flores oncológicas, digo, ontológicas que
o crepúscul’ocaso torna carentes de
alvorada, animais civilizados à força
pelo uso da gramática e da horta,
sombras, sombras: sobras de sombras.

*

Terei sido quando não for já.
Como esta mosca tacteando o frigorífico:
silhueta invertebrada de si mesma,
num lapso chegou, nada não é já
quem foi, mais não voo-será.

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Canzoada Assaltante