A chuva e o nevoeiro regressaram ontem à montanha. Revi-os como a duas pessoas conhecidas desde sempre. Das árvores do parque, restava apenas a cabeça. Interrompi o trabalho, fui à varanda assistir. O verão, como um leão moribundo, tinha-se rarefeito, abandonando um rasto de folhas torradas e de horas sufocadas. Risquei o fósforo, queimei jornais velhos na lareira. Estive calado todo o dia. Não pus música a tocar. Fiz comida, chá, café. Não saí. Estive quase sempre na sala. Trabalhei pouco. Os fantasmas da casa permaneceram sossegados. O frio surpreendeu-os. O da casa-de-banho estava de pé na banheira. Via não sei o quê através do vidro martelado da janela. Estava vestido e descalço. Mijei sentado para não o perturbar. Duas crianças desirmanadas brincavam em cantos diferentes do quarto de hóspedes. Antes de me deitar, espreitei-lhes as mãos muito brancas, muito rápidas no ar encarnado. Beijei-as mentalmente. Li meia dúzia de páginas do romance policial, fumei um cigarro sem dor, desliguei a cabeceira. Sonhei com um rádio ligado algures na casa. No sonho, vi-me num salão de casino dançante. Mulheres fumavam haxixe por longas boquilhas. Usavam chapéus moles e redondos debruados a fita de seda. Os homens não tinham dentes. Riam-se como buracos. O balcão do bar era de mármore verdescuro. Tinha um varão para os pés e outro para as mãos. O barman tinha dentes. Ele não falava, mas eu ouvia-lhe o rumor dos pensamentos. O barman estava sempre a pensar na mulher doente em casa. Perguntei-lhe se tinha combatido na II Guerra Mundial. Os únicos dentes do salão faiscaram com tristeza:
– Ela não merecia uma doença assim.
Acordei cedo, hoje. O ar do quarto cheirava a bolachas e a haxixe. As crianças não estavam, não estava na banheira o outro. Tomei banho de olhos fechados, recebendo na abóbada da cabeça a chuva particular. Despejei a cafeteira, lavei-a, fiz café fresco. Fritei toucinho, torrei pão, abri um frasco de espargos. Comi devagar como um padre. Pensei (ainda penso) em como arranjar lenha. Ao meio-dia (há menos de duas horas) saí. Havia algumas nódoas de sol frio nas árvores. Depois, já não. Fui ao escritório do patrão receber ordens. Voltei para casa.
Não tenho pena do leão.
– Ela não merecia uma doença assim.
Acordei cedo, hoje. O ar do quarto cheirava a bolachas e a haxixe. As crianças não estavam, não estava na banheira o outro. Tomei banho de olhos fechados, recebendo na abóbada da cabeça a chuva particular. Despejei a cafeteira, lavei-a, fiz café fresco. Fritei toucinho, torrei pão, abri um frasco de espargos. Comi devagar como um padre. Pensei (ainda penso) em como arranjar lenha. Ao meio-dia (há menos de duas horas) saí. Havia algumas nódoas de sol frio nas árvores. Depois, já não. Fui ao escritório do patrão receber ordens. Voltei para casa.
Não tenho pena do leão.
Caramulo, início da tarde de 14 de Setembro de 2006
5 comentários:
... até que hoje ganhei coragem, enchi de ar os pulmões, acerquei-me da caixa de comentários; tudo isto para perguntar, titubeando:
Qual é o verdadeiro nome de Negritarias? (Será Albergaria?)
- Mançã e Tanedecã foi relativamente fácil de descobrir. Mas Negritarias...
Boldrarias.
(Negrito=Bold...)
Ufa...
E eu a pensar que era Albergaria (-a-Velha)...
Bigado, visse!
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