© DA.
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Segunda-feira,
30 de Agosto de 2021
Já os ventos confundem o calendário
Nosso é um sono prometido a ninguém
Tocam-se os elementos, gargalham crianças
Quem botou fogo ao Sol, que se acuse
Esta é a era das listas diárias de mortos & infectados, veio da China esta moda, nascer agora é capaz de não ser a melhor ideia, por que não esperar menos tinta-da-china?
Da formiga, a conduta visa o conduto – o que está & é perfeitamente bem. Não se me peça o mesmo, tarde dobraria tal sino em minha intenção.
Nas oficinas hospitalares, ajuntam-se as ovelhas doentes, reses que o lobo da idade assola. Disfórica, esta. Ansiosa, aquela. Tensa. Deprimida. Confusa. Agitada. Irritável, irritante & irritada. Com dormência. Com formigueiro - Da formiga, a conduta etc.
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Ainda bem que daqui se não vê aonde chegaremos.
A incógnita é de maior teor de acção estimulante.
O pré-sabido é sedativo, que não lemos nem escrevemos.
Vivemos para a ilusão de um porvir gratificante.
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Falam de um rapaz saído do liceu, entrado no emprego (caixeiro-aprendiz de papelaria), com vinte anos não tarda quase nada. Não é assunto que me diga respeito. Isto acontece à saída da Rodoviária, em manhã de bruma densa, capaz de resistir às mãos que tentem arredá-la a palmo de nariz. Esclareço: não tenho então trinta anos sequer. É recente a primeira consciência de ter entrado na, famigerada mais do que promissora, vid’adulta. Atenção: já me morreu gente consanguínea, já portanto confundo trivial com essencial com existencial com curial com (a)normal. Saio de vez da Rodoviária, já não ouço o que dizem do rapaz agora caixeiro-oficial de cadernos & lápis. Vou a uma loja de ferragens, compro pregos (pediu-me o favor o Diocleciano), apetece-me café com aguardente, mas esclareço: fiz quarenta anos no mês passado, deixei-me enganar, lido numa cidade hospitaleira a que sou hostil, mais tarde verei quanto & como tinha razão para sê-lo. É a vida urbana, vão fazendo obras, mudam a silhueta dos postais, é-se mais ou menos nov’idoso, come-se esta gaja, é-se comido por aquela. O que no novelo dos anos continua fiando-se-me é a tarefa de abarcar o contingente de impressões imediatas, da vendedeira de bolas-de-berlim ao homem que se semiveste de fêmea para delícia & gáudio dos transeuntes mais dados à libertação-emancipação-da-mulher-que-há-em-ti. Ainda não tenho sessenta anos agora, venho passando às portas do bairro que ascende às muralhas derruídas, ainda aqui labora um sapateiro daqueles antigos, surdos, alcoólicos & fatalistas como balcões de vinhos & petiscos ao gosto do lavrador. Agora não tenho vinte, tenho dezassete anos, algemo-me de amor por uma donzela de dezasseis, é moça de cuidosas rotinas estudantis, lúcido catolicismo, bom porvir em perspectiva, passando este por matrimónio com rapaz decente conhecido em algum acampamento escuteiro, Baden Powell & Jesus, fria sacristia, a-bênção-meu-padrinho. À saída da Rodoviária, no mês do Maio de eu fazer quinze anos, o Liceu é o acontecimento do ano, prestigia-me a facúndia, sou feliz como as palavras-justas, ainda o trânsito automóvel farrusca a Praça 8 de Maio (meu dia aniversário, nem menos). Começo a dispor de uma caderneta para notações bruscas do quotidiano, pois que me interessam as cores da paleta dia-a-diária, a mulher de saia amarela, o de cachimbo expelindo nevoeiro londrino pela campana, à berma a sarapintura das papoilas, as pombas como projécteis de chumbo não-letal, os bibes das criancinhas ricas nos colégios interditos a miseráveis de quatro anos, a cânfora respiratória no Parque à face do Mondego. Sim, a sensibilidade & a sensível idade parecem farinha-do-mesmo-saco – e as décadas não laboram no sentido de abjurá-las. Aos 46, todavia, é-me dado um quase-ano de tirocínio – é quando me emalo & me embalo para a viagem da mãe-em-moribunda. Vulnerável a sereias que nem grunhir sabem, quanto mais cantar, pagarei caro a distracção & a boa-fé. Não faz mal: onze anos volvidos, jamais fui tão livre. Livre de liberdade & livre de merdas. À saída da Rodoviária etc.
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