01/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 745 & 746

© DA., Sr.



745

Terça-feira,
31 de Agosto de 2021

    Edmundo, de outra dimensão agora por defunto, comia a melhor fruta. A família tinha, mantinha & cultivava terras de bom húmus. Recordo as tangerinas, os pêssegos, os damascos, os figos, as monumentais pêras-de-inverno. Ele partilhava tudo connosco: com o Dourado, o Malha, comigo, com o Deusdado, com a Zabelinha. Só aprendi a morte dele uns sete anos depois de sobrevinda. Feriu-me grande consternação. Muito poucas são as vezes em que tornei à aldeia dele. Recordo que a até agora última vez que o fiz, fi-lo na companhia da Branca, do Cid, do Ferro & da Zabelinha. Sou casado com a Zabelinha. O Edmundo dava-lhe os melhores morangos. Mas fui eu a desfrutar. Fruto da passagem, tudo passa.

746

    Uma senhora dá de comer a sete pombas, duas vêm-lhe à mão. As migalhas vêm em caixa quadrada de madeira. O ano é 1930. Um soldado embrulha tabaco em mortalha. Está sentado sobre um tronco à beira-rio. Ano indeterminado, talvez alvores de 40/XX. Na noite de 7 para 8 de Fevereiro de 1963, um homem resiste com êxito à morte. Um só. Menino trepando árvore. Cavalo pastando. Moinho eólico. Um camponês em dia de feira com bornal ao ombro direito. Passaritos em conversa. Mãe-passarito nidificando. Um anjo pousando em papel rasgado. Vendedeira de mão esquerda levada à face. Um veleiro. Campino na fonte namorando moça. Motociclista em avenida litoral, palmeira no cenário. Uma carpa. Casal olhando em diferentes dimensões. Relógio-despertador. Menino estudando à luz de vela. Mulher de capuz lendo recado. Dois punhos. Uma peixeira. Mais passaritos, mas estes entre flores. Estrada curva. Casas ao longe. Rostos femininos. Casas que árvores beiram. Rosto de fumador. Outro veleiro. Cabeça de burro lapijada com apuro.
    Todo este elenco é meu seguro património. Integra-me a condição. Jamais duvidei de, por meu lado, lhe pertencer. Tais imagens são primevas da atenção que presto ao extra-corpo. Há quase sessenta anos que assim é. Entre (muitas) outras da mesma proveniência (meu Pai), configuram um modo-de-ser. Também dou de comer a aves – e todos os dias. Acreditai-me, se quiserdes: ainda hoje dei desjejum a quatro corvos. Os corvos são os mais madrugadores do meu dia. Davam as seis horas. Atirei bocados de pão bom, do tenro. Não posso mostrar-me, eles não apreciam mirones. Ocultei-me. Eles vieram: dois, três, um quarto um pouco mais tardio. Comeram ali um pouco, como se provando. Levaram depois o que era deles. Não voltam, hoje já não voltam. Logo de seguida, pardais. Depois, pombas. Arvéolas. Piscos. Rôlas. A glória do melro, a boca de ouro do melro nigérrimo.
    Também (ou sobretudo), para mim, as palavras são imagens. Não me refiro à dupla-articulação (significante-significado) mas si à palavra-em-si-imagem. De facto, escrevejo-as. A palavra maçã desce na cedilha & sobe no til: sua folha cadente, seu aroma encarnado.
    Não é grande modo-de-vida. Passar a vida atraído por tais minúcias – não é de homem. Há que temerosamente reverenciar a reforma, a terceira-(& última-)idade, a matrícula no Céu-Além.
    Talvez.
    Saúde, vá. Em caso de cancro, ao menos um que dê para levar a passear à rua. É o mínimo que posso desejar ao caruncho dos paus-santos.
    Nisto, aparece o Corvo de Maçã na Boca.
    Disfarçado de Leitão.
    Lei.
    Tão.

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Canzoada Assaltante