12/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 703 a 705

© Helen Levitt



703

Quarta-feira,
11 de Agosto de 2021

    Enregeladas, roxas, transidas mãozitas dos escolares na Primária. Como se fosse hoje. Naquele tempo em que as estações, as do ano, eram fiéis apeadeiros da Roda-Cronos. Pareço estar vendo-as, as mãozitas dos meninos em curso. Bem sei: é uma nostalgia fácil. Também reajo escoucinhando – E por que deveria ela ser difícil?
    Tudo se faz década, se desfaz século, pó de milénio, lunar desperdício, ofício solar. Demasiado pequenos para tão ingente brutidade, nós demasiado formigas para tão elefantina coisa cósmica. Em uma divisão individualizada, alguns apetrechos fazem por juncar o entretenimento. Aqui trabalha-se, ó pessoas.
    E do Primário-Tempo? Prólogo que se volve posfácio no natural usufruto da duração. Havia então Invernos a sério. A sala de aula tinha todavia fogão, juntava-se-lhe paus & ripas, o lume crepitava agasalho, já as pequenas mãos respiravam, o lápis recendia a bonomia aritmética. Pode isto gastar-se, pode?
    Pode.

704

    Olho adentro os desvãos & os desníveis da lembrança, tenho a quem agradecer fortunas sapientes – do aprender a ler ao ser delicado & dedicado. É gente, é de gente que escrevo. (Eu ia escrever que falo – mas é calado que estou, mais ninguém por aqui pulula silabário. Esta é uma verdade.)
    Devo farta maquia da minha bo’a’ventura a volumes que as jornadas filtravam mercê de invernos depressa primaveris, a luz solar coada por cortinados amarelos & humildes, lá fora o pessegueiro, o rancho de cães com suas pulgas portuguesas.
    Então: moldura prata, campo lazúli, par de cabeças de cão a ouro, diagonal escarlate & prata, pepitas de amarelo-torrado sobre crepúsculo-feno. Refiro-me às armas heráldico-familiares – mas são livrescas armações, cuidado, livrescas tão-só: nenhuma família nem clã algum me apontam seu ministro por embaixada. Ainda bem: antes só do que má viola de fado.
    Adiante porém: Em os tais desníveis & os tais desvãos d’alembradura, não poucos são os seres meus cobradores dessa pecúnia chamada gratidão. Reverso dessa grei? Também hei. Nos vários estábulos onde hei tido gasalho, agasalho & vizinhança, conheci material humano de largo espectro de acção malevolente. Anuindo à simplicidade – já conheci muita merda bípede. Nos ofícios que, contrariado, pratiquei, assisti a casos de dedicação como a exemplos de incompetência, de generosidade como de fideputice. Bem sei: assim é em todo o lado, todo o ramo, todo o bocado, todo o monturo. Falo todavia por mim só – por o que vi, ouvi, li, conferi. No ensino, no jornalismo, na construção-civil, na edição-livresca – arredei estrume com ancinho de pau como tacteei a presença de sábia gente natural & diligente.
    Hoje em dia, trabalho sem remuneração & sem remorso. Não vou auferir pensão-d’aposentação: so what?, o que for será até deixar de ser, como tudo liminarmente deixa. Fortuna de imagens me não desampara. E a certo patamar, ou plataforma, me foi dado já chegar – consistindo em saber (saber-de-fonte-limpa) que é meu o que me respeita, não pertencendo eu a quem nem ao respeito se dá. Isto não é complicado, sendo mesmo assim.
    Hoje, por exemplo. Até alta madrugada, bati oftálmicas: leituras de Alain-Fournier & de Cruz Malpique. Escrevi pouco, bocejei alguma coisa, rendi-me pouco antes das cinco. Acordei de boca deslavada e algo pastosa: foi de ter mastigado em sonhos. Era por o banquete do Ateneu Literário. Presidia ao ágape o senhor Comendador João Tieres Corvelha da Paz. Algumas presenças: o tabelião-sonetista Donato Maldonado, o dentista-epigramático Fortunato Fanado, o coveiro-alexandrino Gascão Tartarino & o enfermeiro-épico Ezequiel Celestino. Acepipámo-nos de torresmo-de-bacalhau a esmo de malvasia. Eu não discursei. Preferi haurir a sabença retórica & quilogramática de Tiago Bravo das Mercês Dourado, prestimoso & prestigiado farmacêutico-tenor da nossa praceta lírica. Sem aparente transição, vi-me depois de novo infante lá no monte para que dava o meu quarto de solteiro. Desse segmento onírico, todavia, V. darei recado outro dia.

705

Outras vezes de facto só em verso
logro dizer de mim qualquer coisita
que metade (ou nem sequer o terço)
de coisa bem pensada dê a dita.
Marçal, amigo velho que pratica
da pesca-fluvial a paciência,
é quem me lê a rima nunca rica
que esforço mas sem grande presciência.


 

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Canzoada Assaltante