13/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 706 a 708

© DA.


706

Quinta-feira,
12 de Agosto de 2021

    O século XX foi o mais desgraçado dos séculos, calhou-me ele por nascimento mas é no decorrente que algures morro. Caso não sejais fantasmas já ou não conteis tão-só vinte anos de nascidos, o mesmo se aplica a V. Assim é.
    Quanto ao exposto no parágrafo primevo de hoje, nada a fazer – e tudo por refazer. Do século anterior, guardo a melhor parte de entre 1964 & 1986. Não é mau: se eu chegar aos 88, é a quarta-parte da minha vida. Mas duvido que não seja, afinal, mais do que tanto – ou tão pouco. Em valor percentual, digo.

707

Ao fresco calado da noite um homem pelas ruas medievas
Indeterminado ano é o presente desta sozinha acção
Rés a igrejas fechadas com deus deixado cá fora como os cães sem dono
Lá vai ele a seu destino único, matéria prescritível como o papel

O frio dessas naves para sempre pousadas, vazias, eclesiais
Cidade de um homem só – mas não assim todavia todas, ó manos?
Passou o dia, a década exauriu-se como as mães fatigadas
É precária a jóia engastada na pedra, vulgo coração

Digamos que esta tarde dormiu para eximir-se ao calor
Despertou no deserto com telhados por todos os lados
A fontan’antiga murmurando seu débil cristal, bebedouro d’aves
Nem os cães acreditam em deus, vivem outra demanda, sábios

Lábios & beiços, mães & cães, pasto vocabular deste homem
A ninguém que o espere levará de que desespere
A solidão & o desamparo são diferentes coisas às vezes irmãs
No promontório é bom estar ao frio bebendo o ar preto

A alta silveira estelar fulge a gelo onde até os anos são luz
O sideral caracol purga hidrogénio à bruta, aquilo tudo incendiado
Como as matas no Verão Perpétuo do Século XXI, nosso último
Preferiríeis talvez que este homem nem a seu papel mesmo chegasse

É deixá-lo ir, estão devolutas as barracas da feira-popular
Anda uma criança a fazer-se homem para isto
O deserto ainda não é o mais, pior é a memória do desertor
Por mais que isto se diga devagarinho nem a soletrado cântico chega.

708

    “(…) o corpo,
    essa coisa que afinal nunca nos deixa
    e nos rouba de noite à nossa sombra.”
    Isto é Armando Silva Carvalho,
    Sentimento dum Acidental,
    página 39.
    Leio isto na minha noite, amanhã de manhã sirvo de seara a determinada colheita, digo, de sangue & mijo em jejum, o Estado-Pátrio interessa-se pelos meus valores: os éticos como os respeitantes (& respeitáveis) à glicose, ao azoto ureico, à creatinina, aos uratos (meu velho ácido úrico), sódio, potássio, cloro, cálcio, osmolalidade, proteínas totais, albumina, ALT (GTT), fosfatase alcalina, gama GT, bilirrubina total, creatina cinase, proteína C reactiva, colesterol total, triglicerídeos, hemograma com leucograma, tempo de protrombina, tempo de tromboplastina parcial + Activado/APTT,
    a verdade é já não me largarem,
    entrei no sistema & do sistema já não saio,
    como não saio de
    o corpo
    essa coisa que afinal


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Canzoada Assaltante