31/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 742 a 744

© DA.

 

742

Segunda-feira,
30 de Agosto de 2021

    Já os ventos confundem o calendário
    Nosso é um sono prometido a ninguém
    Tocam-se os elementos, gargalham crianças
    Quem botou fogo ao Sol, que se acuse
    Esta é a era das listas diárias de mortos & infectados, veio da China esta moda, nascer agora é capaz de não ser a melhor ideia, por que não esperar menos tinta-da-china?
    Da formiga, a conduta visa o conduto – o que está & é perfeitamente bem. Não se me peça o mesmo, tarde dobraria tal sino em minha intenção.
    Nas oficinas hospitalares, ajuntam-se as ovelhas doentes, reses que o lobo da idade assola. Disfórica, esta. Ansiosa, aquela. Tensa. Deprimida. Confusa. Agitada. Irritável, irritante & irritada. Com dormência. Com formigueiro - Da formiga, a conduta etc.

743

Ainda bem que daqui se não vê aonde chegaremos.
A incógnita é de maior teor de acção estimulante.
O pré-sabido é sedativo, que não lemos nem escrevemos.
Vivemos para a ilusão de um porvir gratificante.

744

    Falam de um rapaz saído do liceu, entrado no emprego (caixeiro-aprendiz de papelaria), com vinte anos não tarda quase nada. Não é assunto que me diga respeito. Isto acontece à saída da Rodoviária, em manhã de bruma densa, capaz de resistir às mãos que tentem arredá-la a palmo de nariz. Esclareço: não tenho então trinta anos sequer. É recente a primeira consciência de ter entrado na, famigerada mais do que promissora, vid’adulta. Atenção: já me morreu gente consanguínea, já portanto confundo trivial com essencial com existencial com curial com (a)normal. Saio de vez da Rodoviária, já não ouço o que dizem do rapaz agora caixeiro-oficial de cadernos & lápis. Vou a uma loja de ferragens, compro pregos (pediu-me o favor o Diocleciano), apetece-me café com aguardente, mas esclareço: fiz quarenta anos no mês passado, deixei-me enganar, lido numa cidade hospitaleira a que sou hostil, mais tarde verei quanto & como tinha razão para sê-lo. É a vida urbana, vão fazendo obras, mudam a silhueta dos postais, é-se mais ou menos nov’idoso, come-se esta gaja, é-se comido por aquela. O que no novelo dos anos continua fiando-se-me é a tarefa de abarcar o contingente de impressões imediatas, da vendedeira de bolas-de-berlim ao homem que se semiveste de fêmea para delícia & gáudio dos transeuntes mais dados à libertação-emancipação-da-mulher-que-há-em-ti. Ainda não tenho sessenta anos agora, venho passando às portas do bairro que ascende às muralhas derruídas, ainda aqui labora um sapateiro daqueles antigos, surdos, alcoólicos & fatalistas como balcões de vinhos & petiscos ao gosto do lavrador. Agora não tenho vinte, tenho dezassete anos, algemo-me de amor por uma donzela de dezasseis, é moça de cuidosas rotinas estudantis, lúcido catolicismo, bom porvir em perspectiva, passando este por matrimónio com rapaz decente conhecido em algum acampamento escuteiro, Baden Powell & Jesus, fria sacristia, a-bênção-meu-padrinho. À saída da Rodoviária, no mês do Maio de eu fazer quinze anos, o Liceu é o acontecimento do ano, prestigia-me a facúndia, sou feliz como as palavras-justas, ainda o trânsito automóvel farrusca a Praça 8 de Maio (meu dia aniversário, nem menos). Começo a dispor de uma caderneta para notações bruscas do quotidiano, pois que me interessam as cores da paleta dia-a-diária, a mulher de saia amarela, o de cachimbo expelindo nevoeiro londrino pela campana, à berma a sarapintura das papoilas, as pombas como projécteis de chumbo não-letal, os bibes das criancinhas ricas nos colégios interditos a miseráveis de quatro anos, a cânfora respiratória no Parque à face do Mondego. Sim, a sensibilidade & a sensível idade parecem farinha-do-mesmo-saco – e as décadas não laboram no sentido de abjurá-las. Aos 46, todavia, é-me dado um quase-ano de tirocínio – é quando me emalo & me embalo para a viagem da mãe-em-moribunda. Vulnerável a sereias que nem grunhir sabem, quanto mais cantar, pagarei caro a distracção & a boa-fé. Não faz mal: onze anos volvidos, jamais fui tão livre. Livre de liberdade & livre de merdas. À saída da Rodoviária etc.



30/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 741

© Robert Doisneau

741

Domingo,
29 de Agosto de 2021

    Conversei hoje com quem sabe falar & do que fala. Aconteceu pela finimanhã. Acampámos a vontade de beber café a uma mesa repetida de outros nossos encontros. Café tomado, foi só deixar as éguas irem beber ao rio: começámos a trocar parágrafos cheios de asteriscos-de-rodapé.
    Alguns temas versados & conversados: a morte de Rui B. em particular & o teor obituário da vida em geral; Proust & Mann (um pouco de cada); ilha da Madeira: jornal, água-mineral & mar; Escola vs. Ensino: odiosa burocratização da actividade docente & remelosa adoração da maquinaria informática em detrimento do livro-livro, da leitura papel-vida. Como nós os dois juntos (excepto ele) mal perfazíamos cinco euros, foi só aquelas duas bicas que gastámos. Eu não fumei. Ele, que nunca fumou, elogiou-me a contenção antiviciosa. Eu elogiei, dele, a pujança viril, o olhar especioso, a maturação ponderada das recordações – e, sobre tudo o mais, o apetite de futuro que o demarca, quiçá em oposição diamétrica, do meu scroogismo existencial, por assim dizer.
    Pagou ele os cafés, atitude que vem tomando desde que nos conhecemos. Daqui a três anos, portanto & se lá chegarmos, comemoro cinquenta anos de cafeína graciosa – e ele, outros tantos de caridade.
    Num ápice, fez-se noite. Estou em casa. Olho da marquise alta, sinto na via o uivo azul da ambulância, poucas viaturas na noite dominical. Lembro-me de adir, aos citados Mann & Proust, referências que o meu Amigo fez também a Ruy Belo, Eça, Vilhena, Joyce. O único modo de conseguir pagar-lhe um café é (tem de ser) à traição. Nisto, é quase segunda-feira. Volveu-se solilóquio o que posso acrescentar a estas linhas. Todavia, à falta de mais reveladora expressão, sinto o dia ganho desde acabada a manhã. As éguas hão-de, sem pressa cada uma, vir ter a casa de cada um.

29/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 738 a 740

© Alfred Stieglitz

738

Sábado,
28 de Agosto de 2021

    Por uma noite fria, em aldeia de que perdi o nome, demos cantata à população íncola. Fizemo-lo bigraciosamente: por graça & de graça. Penso ser, com João Francisco, o derradeiro sobrevivente dessa formação. Julgo, ainda, ter sido por volta de 1984 – o meu Pai ainda saía de casa, esporadicamente só embora.
    É abafadiça a hora a que escrevo – e outros o século & o milénio. Há muito não toco em grupo. Sim, muitos anos se deixaram arder desde que pela última vez fui um-inter-pares: unus, não primus. Recordo sem toleima nostálgica esses tempos em que a música não só me entrava como me saía também. Recordo porque-sim, mais curial razão que, ao menos de momento, me ocorre.

739

Muitas destas páginas são tintas de pessimismo & des-fé.
Bem o sei. Muitas mais são bem capazes de vir emulá-las.
Só alinho em coisas sozinhas, não me faço rodapé
de alheio texto créu de conspirações, maquinações & cabalas.

Sou vou, senhorial, por onde aponto meu mesmo nariz.
Eu sou o que me digo, não sou o que & do que se diz.
Já nem sequer lamento alheias autobeatificações.
Acho-as oleaginosas, até indecorosas, só senis (aos) tropeções.

Sei que os idiotas-da-turma subiram ao comando social.
Conheço a recompensa que aufere a me(r)diocridade .
Abomino a caca do polític’u-recto, essa ganga bestial
que urra, burra, por as cloacas da cidade.

Deixou a sexualidade de ser condignamente privada,
tornou-se trombeta, Mister Darwin, da involução.
As lambéconas coçam em público a tomatada
& tremaricas lambem cones de gelado pimentão.

E por todo o lado o “respect” & o pseud’anti-racismo.
Ser-se branco, agnóstico & hetero é a pior das ofensas.
Evitar cercanias ciganas é ultramontano direitismo.
E fumar é cuspir em deus. E blasfemar contra as crenças.

Eu cá por, mim, rapazes, digo-a sempre toda:
qualquer “cultura” anormal, cá por mim, que se fôda.

740

Os dias acabaram-se esta madrugada para o pedrulhense Rui Borges.
Falhou-lhe o coração na urgência hospitalar.
Há décadas trabalhava ao balcão da farmácia na Sá da Bandeira.
Nasceu em 1959, não viveu afinal muito, parece fácil não-ser.

Como vagas surdas batem em meu litoral estas novas.
As pessoas vivas telefonam-se, consultam-se, avisam-se.
A vizinhança bairrista vai cedendo devoluções à terra.
A Grande Roda apequena-nos em perfeita calma.

Agora há tão-só que recolher & ajuntar os cacos.
De nordeste da memória chega & parte a aragem indiferente.
Uma espécie de pudor vela os óbitos & os hábitos.
Nada disto conta já para aquele Rui tantos anos trabalhador.

Em camp’aberto, uma pessoa respira luz, sente-se partícipe.
Não há como transmiti-lo, a pessoalidade é país fechado.
Como António Fragoso, ali da Pocariça, tão cedo decepado.
Como tantos que se fundem em um, se bem no atentarmos.

Chopin & Schumann vigoram nos quartos solitários.
Desmantelaram do largo a feira tantos anos rumorosa.
Rumor & rosa, há-os assaz no Fragoso da Pocariça.
Levou-o a grip’espanhola, vírus-chinês daqueles anos.

2021 & 1918, por A.F. & por R.B., parecem-me afinal comuns.
Comuns-inter-pares, digo, entre si: a mesma regra se lhes aplica.
É possível, pela Música, unirmo-nos a outras solidões.
Despem-se os bairros, estiolam as vizinhanças, é desgracioso.

28/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 733 a 737

© DA.

733

Sexta-feira,
27 de Agosto de 2021

    Não ser uma criança anacrónica, mais (muito mais) senil do que virente. Não palmilhar a via-pouco-sacra da constante gratificação-imediata. Receber música sem próxima no apetite. Assimilar só o mínimo – porque a demasia dá mau troco.
    Vou pensando isto no meu deserto populoso.
    Primevas impressões continuam vibrando no velho.
    Luta antiga: deixar que os mortos também durmam.
    (Quero dizer isto bem: mas custa, não é dado nem fácil.)
    Fragilidade, doçura, partilha, entendimento, leitura.
    Não me faltam traves-mestras nem mestres seguros.
    Faltam-me cinquenta anos mais, julgo, talvez julgue mal.
    (Sim, julgo mal.)

734

    Suspende-se a sós o momento sem fio narrativo:
    aqui vive-se a conta-pingas quantas vezes?, muitas vezes.
    É trabalhoso ser-se pensante enquanto vivo:
    mais valera deixar-me por escrito no caderno que os chineses
    me venderam baratucho, feito talvez por crianças
    de olhos cansados que do Partido enchem as panças.
    Tergiverso & desconverso, é o que dá o ócio contrariado. Fora, a solaridade torna fantasmático o orbe. O Sol parece uma lua cega. É pobrezinha, a nossa democracia – mas é uma democracia melhorzinha que a sionista-talibanesca-brasuca-etc. Isto de ser-se cívico não é rebuçado para toda a bocarra.
    Na tarde descampada, erguido da sesta doentia,
    o poeta misantropo só a si dá insatisfações.
    Voga & vai imperialmente de Pessoa a Camões:
    e recebe mesada de sua tão boa madrinha & tia.
    Fechei há muito este quarto a visitas interesseiras, onzeneiras, maliciosas, porcas-no-estrume. Eliminei rancor, eliminei ciúme. Gasto esta tinta, aproveito este papel. A minha vida é tão incontável quão a mais esquecida pedra do caminho, a mais vaga pulga da caminha. Filtro a minha luz mesma. Toda a gente faz isso, não há aqui novidade, é humana recorrência.
    Nada aqui dentro, a não ser tudo.
    Nada (o mundo-no-mundo), excepto tudo.
    Tenho aqui tudo – por nada o trocaria, se nada houvesse ou fosse. Não domino os mares, não fujo à sideral solidão de cada maluqueira elementar: porra da consciência, o mim-por-si.

735

    Tenho visitado alguém-também-meu em curso de apagamento. É uma obliteração cursiva: ou uma existência em itálico. A minha potência é nenhuma, por total a impotência de cada um em situação como esta.
    Outros visitantes abordam aquela instituição, vão ver a quem chamam (ainda, se não para sempre) seu ou sua. A brisa toma aquele montalto, a vegetação treme, o fresco sobrevive ao sol inclemente.
    Há gatos pelo pátio. Levo-lhes ração seca. Vejo-os comendo. Parecem-me magníficos pobres. Andam pelo cimento como pela horta vizinha do Lar.
    (Escrevendo assim – mais biolinearnarrativamente, por assim dizer –, sou capaz de ter mais leitura. O artigo 734 começa por: Suspende-se a sós o momento sem fio narrativo: e vai por ali-diante parvoiçando hermetismos.)
    Há gatos pelo pátio – dizia. Revejo-os & alimento-os uma vez por semana. Toco um pouco de música. Não levo cigarros, não fumo, aproveito o ar alto daquele pedaço de serra.
    Nem sempre foi assim – com o meu agora visitado, fiz outro tipo de excursões. A guitarra é a dele, aliás. É tudo quietamente triste. Digo-o assim por ser verdade. Não me interessa se é ou não real: é verdadeiro. E não dura mais cinquent’anos.

736

O meu é um País de Especialistas Tudólogos.
O meu é um Pedaço Nunorogeiroado.
Todos percebem de tudo, a começar p’los Futebólogos.
País do TV-jantar com sabor a vomitado.

737

    Um tablóide inglês (julgo que The Sun) trocadilhou com graça em manchete, a propósito da debandada em Cabul: “Joke Biden”. Ri-me e concordei sem esforço. Aquele paiol de merda chamado Afeganistão parece nunca mais rebentar de vez. Mas a jok’anedota lá está: risonho & enxuto, o parvo do velho.
  Por cá, os rebanhos simiescos de sempre: de madrugada, balindo & emporcalhando as vielas do Bairro Alto; pela finitarde, afocinhando no aeroporto à espera do Astro-CR7. O fraco juízo fortalece a beócia gente. (Chamemos-lhe assim, gente, para praticar a boa’cçãozinha-do-dia.)



26/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 730 a 732

© DA.


730

Quarta-feira,
25 de Agosto de 2021

    Morreu ontem Charlie Watts, o decan’octogenário baterista (muito bom músico) dos ameaçadoramente perpétuos The Rolling Stones. Quem morre hoje, ainda não sei. Temos tempo até dar-se a meia-noite.

731

    Sim, algum vazio vem tomando conta aqui do eu-lugarejo.
    Muita (quase total) ausência volitiva de sombra de desejo.
    Não tenho planeado excursos ao âmbito em breve ex-polar.
    Pular? Não me dá para tal, aqui ou qualquer outro lugar.
    Por outros vocábulos: as linhas supra são devidas ao meu des-gosto pelo Verão excessivo deste milénio. A caloraça atordoa-me, torna-me verme inerme, desprovido, desarmado, mole, mal, mula. Por assim dizer, volve-me mútico. Na sufocação das sestas, vejo com as interiores retinas remexidas assombrações. Suor agitado, quente, malfeitor da própria pele. Revoluta anti-serenidade, sofrimento sem caus’aparente. Ideias borrascosas bravejam & daninham a minha idade insensata. Eu quero viver abnoxiamente, sim, mas assim não posso. A temperatura é maléfica, filha-da-puta, deletéria, ofensiva, tóxica, puta-que-a-malpariu. A minha escrita mesma eriça-se, corrompe-se, degrada-se, faz-me asneirar, transpiro sem projecto-de-vida, fornicam-se-me os fenótipos, feia-se-me o rosto (mais ainda, digo), rangem-me as dobradiças, fissuram-se-me as cartilagens, isto é o diabo órfão de deus. Pervicaz, pertinaz, contumaz, relapso calor infernal: dai-me neve, frio de tremer-queixos, dá-me o teu reverso. Abjuro de nada. Arrependo-me amanhã. Quero brisa & morrinha no pomar crepuscular, geada dilucular, os meus Pais vivos mais um pouquinho.
    Sim, algum vácuo vem a(r)madurando-se em meu tronco sem ramos.
    Não sei o que somos? Pois não. Mas sei p’r’onde vamos.

732

A entrada anterior confirma-me & reitera-me:
como senil-queixinhas, digo – e de primeir’apanha.
Mais me valera ir de poeta-frasco pa’ Espanha?
Não. Nicles. Mas, olha, contigo ’inda falo. Espera-me

em melhor sítio por um melhor dia. Nem tudo
é perda ou merda, que ainda alguma palavra podemos.
Sabemos da inevitabilidade daquela coisa. Sortudo
deveras é quem não ouve ou sabe o que dizemos.

25/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 729

© Irving Penn


729

Terça-feira,
24 de Agosto de 2021

    “Em póstuma vigência, a vida do observador há-de ser contada – e avaliada – pelos elementos mesmos que a observação tenha reunido, Zé” – disse Raul, saindo-lhe das narinas o fumo do Chesterfield que ia tragando. Zé bocejou. Raul percebeu, disse que ainda tinha muito que fazer até se fazer noite e saiu do Café. O restante não bocejara (só) por enfado mas (também) por fadiga sincera. Deitara-se tarde e levantado muito cedo. A conversa com Raul, é verdade, tinha sido o monólogo de costume. Nisto, deram as onze & ½. Zé pagou o vermute, decidiu ir indo pela fresca até onde almoçar. Foi pela João das Regras, cruzou o rio, comprou tabaco no quiosque do largo, abancou para comer na da Gala. Já lá estavam Tino, Varito & Nísio, os três-da-vida-airada. Comeram os quatro um vasto cozido-à-portuguesa, cujo vapor perfumava por dentro a resignação de estar vivo. O vinho vinha em púcaros frescos de barro-vermelho. Consolaram-se sem esforço nem remorso. Dividiram manamente o prejuízo, foram-se ao Madrid da Direita beber cafés & bagaços. Jogaram a sueca até às quatro & ½. Dispersaram-se com lágrimas falsas.
    A incerteza encontrou uma aberta, instalou-se de supetão em Zé, que a sacudiu pela rua como quem despacha um importuno de seita religiosa. Foi ao Arcádia telefonar ao filho. Ninguém em casa. Seis da tarde e ainda o filho na rua. Mas era terça-feira, dia maior de aulas do rapaz. Problema nenhum. Comprou o vespertino no quiosque do largo, cruzou a ponte, voltou pela João das Regras. Já Raul lá estava, observando postumamente tudo.


24/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 728


 
728

Segunda-feira,
23 de Agosto de 2021

    Por causa do calor, a luz é de ressonâncias metálicas, de um brilho que cega & sega, doendo em água quente nos olhos já de si piscos & priscos. Procuro a sombra – que encontro, na casa fechada até aos ventos que não há. Depois: visão de mobiliário que há cinquenta anos já era antigo como as memórias lambidas a vidro – em casa apalaçada com jardim arborescente. Ali em Mogofores? Parece que sim. Não sei. Vi dois cavalos belíssimos correndo sem atilhos.
    À face da infância, o futuro é tão remoto quão infinito. Depois, é o passado a ter esses dois atributos. Uma pessoa anda nestas bolandas caladas, não há muito de que rir, o próprio pranto ganha mofo.
    23 de Agosto de 1998 (domingo): o João da Bininha morre a sós em Londres. Mas não por causa do calor.

23/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 727

© DA.



727

Domingo,
22 de Agosto de 2021

    Perguntaste-me se sempre fui ao Choupal no sábado, olha, não fui, não me organizei nesse sentido, fica o intuito, um destes dias será, hei tão-só que corrigir alguma tendência para desviar horários, dormir menos de dia, voltar a levantar-me cedo, deitar-me com as galinhas & acordar com o galo.
    Já o domingo se escoou pelo ralo inexorável do espaço-tempo que cabe a quem vive, depois de almoço fui ver o meu Irmão, voltei desse encontro de palavras evacuadas, nem para ler me deu, pasmei um bocadito ante a chávena evacuada ela também, apeteceu-me o leito, dormir a vida, não fo(r)çar.
    Nem tudo se gorou: em vez da volta pelo Choupal, terminei a leitura de uma antiguidade livresca (Braga, 1955) dedicada ao tema dos latrocínios literários: Filosofia do Plágio, de Cruz Malpique, professor que foi do portuense Liceu de Alexandre Herculano. Nomes altissonantes da História da Literatura apanhados, como meninos travessos, a botar mão-baixa a outros não tão sonantes nem tão altos.
    Dessa leitura, faço citação disto:

    “Um velho prolóquio português, citado numa carta de Brotero, diz: “Um só dedo não faz mão, nem uma andorinha Verão.”

    E disto:

    “O segredo de dois é segredo de todos (…)”

    E disto ainda:

        “(…) despojar patriotas é furto, despojar estrangeiros é conquista.”

    E:
    
    “(…) qui vole un oeuf, vole un bœuf.

    E três versos de um soneto de F. Maynard (que um tal Voltaire plagiou – aliás, o A. de Micromégas fazia gala de “Je prends mon bien où je le trouve”…):

    “Je suis heureux de vieillir sans emploi,
    De me cacher, de vivre tout à moi,
    D’avoir dompté la crainte et l’espérance.

    Mais :

   O Seguro morreu de velho e D.ª Prudência foi-lhe ao enterro…”

    E tudo, considerando que é curial “savoir pour pouvoir”, para merencoriamente concluir, a propósito de ser legítimo ou ilegítimo o plágio, que, na prática, “as abelhas, fabricando do alheio, servem mais do que as aranhas, tecendo do próprio.”



22/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 726

726

Sábado,
21 de Agosto de 2021



    Não há-de ser hoje que o mundo alinhe em harmonia para consigo mesmo. Gente a mais, mundo a menos: inversão proporcional. Vou preferindo outros arraiais. Estou na minha direcção. Não há aqui prodígio nem grotesca anormalidade. É só uma pessoa a ser-se. O mundo é outro assunto. Profusão (pandoriana) de histórias realizadas: mas só as documentadas em obra podem palpitar algum tempo. A meninice de Marcel Pagnol. Saint-Exupéry em o avião-correio. Léo Ferré com sua Pépée. Brel antes da ribalta. A mãe de Simenon não gastando o dinheiro que Georges lhe envia. A tragédia individual chamada Roger Casement. O labor titânico de Balzac, Flaubert, Hugo, Zola. Ante o precedente rol, que interesse pode ter uma actualidade noticiosa exausta à nascença logo? Nenhum. A harmonia utópica? Tem de ser desutopizada no plano uno-pessoa. Funciona a rede pública de transportes? Funciona. Então muito bem. Há muito tempo que está em obras de repavimentação a Rua Doutor Manuel Rodrigues. O calor levanta pó, não é agradável. Saem da farmácia, aviadas até os dentes, mãe & filha. Cada uma com seu saquinho de papel, cada saquinho com seu tesouro farmoquímico. São os bombons delas, velhas ambas, andorinhas anacrónicas de uma primavera falida. Chopin esteve hospedado chez George Sand. Um rio de conimbricenses pelo leito da Sofia. Lidam suas vidas transitárias & transitórias. Göring consegue envenenar-se antes que o enforquem. Stockhausen ousa uma obra original, sem peias nem concessões. O Choupal recebe. Ernst Thälmann é dos varridos da História. Outros mandavam na maré das ruas, nas instituições cancerosas, no paiol repleto de fisgas-de-fogo. Vem aí o incêndio-posto no Reichstag. O gordo Göring manobra com extrema oportunidade. Ernst (outro Ernst) Röhm é outro dos varridos. Quem se lembra dele? Minerva. Mirvel. Ideal. Turíbio. Estaco. Lufapo. Os nomes-cartazes esmaecem-se na bruma célere, em câmara-veloz as nuvens do Sábado esfarrapam-se pelo azul-cinza. Não venham jurar-me que a mescla não é curial, não venham: por não valer a pena virem. Saiotes cardinalícios, togas tribunalícias & outras imundícies alimentícias. Essa Coimbra de 40/XX, cerrada em pedra, caqui, revivalismo chunga de uma História-Legionária, bufos por todo o escaninho daninho mais comezinho. Quem? Um Josef Hartinger? Nada pode, pobre peão. Interessam-me mais, todavia, Harry Dean Stanton & Guilherme Pais. São figuras que me recorrem sem requerimento ou prévia campainha. O primeiro, muitos souberam apreciá-lo em conforme gratidão. O segundo, não: poucos se deram ao trabalho de compreender o que aqui trouxe & o que daqui, morrendo, tornou insolvente. Digo o que sei.

21/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 725



725

Sexta-feira,
20 de Agosto de 2021

    Um que esteve em movimento fértil por Itália, Suíça, Espanha: é capaz de ter aproveitado o melhor de seu século. Deixou obra – isso conta. É obra estética & utilitária: serve para ser amada como serve para servir.

    Quando souber que disse o poema.
    Quando eu souber que ele disse o poema.
    Quando ele souber que eu disse o poema.
    Se soubesse dizer o poema.
    Se dissesse saber o poema.

    Disponho de M.C. Escher, de Alain-Fournier, de Al Berto, de P. Nordon dissecando C. Doyle. Não me sinto, portanto, escasseado – por assim dizer. Amanhã é sábado, talvez me vá daqui ao velho frondoso Choupal desta Cidade. Das três últimas vezes, não estive nem andei por lá sozinho: uma vez com a primita Sandra D., outra com a Paula R., outra com o J.J. Carvalho. Três acertos na vida, nem menos.

    Depois, na noite nova, a antiguidade dos próprios pensamentos não suja esta casa. Certa permanência evolutiva ocorre em processo sem esforço. Posso dizer isto de maneira di(verso)versa:

    Mais fundamentada a paz dos mortos é
    quando esquecidos & em paz deixados.
    Nomes de mármore sobre ossos inumados,
    datas sem futuro, soldados sem pré.

    Mas não vale a pena (não esta noite, digo) levar à rua estas dores sem comunhão possível ou sequer provável.

    Um que esteve
    etc.




20/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 723 & 724

© DA.

723

Quinta-feira,
19 de Agosto de 2021

    Circunstâncias acertadas devolveram-me hoje às ruas. Tive sorte: o corrente Agosto, ao menos pelo ocaso da tarde, não tem sido mortífero. Pelo contrário, a brisa do entardenoitecer é vivificante. Apanhei o 27 das 18h¼, depressa me vi de volta cumprida. Volteei em graça barata as cercanias da Baixa (Arnado, Bota-Abaixo), tomei café no Gerardo, estreei um bolígrafo novo (tinta preta, esta, carapaça de amarelo-torrado). Não se está mal na vicissitude. Passam airosamente donzelas frescas, quási por vestir, etérea gaze as nimba – e mocidade se chama tal éter. Vi o euromilhões, saiu-me ar. Sorri ante tal resultado: mas cheio de amargura metafísica foi o sorriso. Esqueci-me logo do falhanço, atraído que fui por alguns desses esquisitos bípedes tatuados. Antigamente, era exclusivo de reclusos prisionais & de marinheiros profissionais, isso de borrar o corpo com signos indeléveis à força de agulha-tinta. Agora, é moda dos sencientes antropóides. Uma gaja levava um santo brasileiro na espádua. O gajo dela tem inscrito no braço LOVE YOU MOM FOREVER. Estranha bicheza, estúpida moda. É como naquela anedota do gajo cuja piça, tatuada também, deixava ler: CÃO. Isto quando murcha. Quando erecta, podia ler-se: ASSOCIAÇÃO HUMANITÁRIA DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE VILA NOVA DE FAMALICÃO. É o que diz a anedota. Digo eu: a ser verdade, a dele é muito (mas deveras muito) maior do que a minha. Enfim: um pouco de risota faz mal nenhum. Por falar em risota, aquilo no Afeganistão também é de morrer a rir. E na Síria. E na Faixa de Gaza. E no Haiti. E na real puta que os pariu a todos. Coimbra é, por enquanto, a aldeola milenária sem grandes bulícios. Morre-se, perdão, vive-se por aqui em santo anonimato a-bênção-meu-pai-deus-contigo-meu-filho. Os ainda-empregados cumprem à tabela sua obrigação sobrevivente. Os ociosos mosquejam restos pela amargura amestrada do ramerrão. Eu faço da seguinte maneira: antes do das 20h00m para casa, galgo o sopé da de Montarroio & iço-me ao Pátio da Inquisição no intuito (coroado de êxito) de emborcar uma ampola de cerveja frígida. José & Maria & O Menino vão comigo. José também vai de emborcadura: uma taça de tinto. Maria toma água natural. O Menino bebe, claro, uma coca-cola. Estamos os quatro bem. Daqui saindo, vamos comer uma bifana à primeira roulotte que encontrarmos. Ou uma sopa à casa-dos-pobres. Isto de milagres, nunca se sabe. Bênção-meu-pai-contigo-meu-filho.

724

Quando nasci, tinha menos quarenta anos que meu Pai.
Tenho agora apenas menos vinte do que ele perfez.
O Tempo caustica-me sem me dizer água-vai.
ConVosco será decerto o mesmo: contas que deus-desfez.

Nascer é despacha(cha)rmo-mos asinha-depressa.
(Crepuscular, escrevo daqui-coimbra-jardim-da-manga.)
Tenho de voltar cedo p’ra casa, a Mãe ’inda se zanga:
ou então não, sou órfão, nem casa hei, ora-m’essa.



19/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 722

© Tina Modotti



722

Quarta-feira,
18 de Agosto de 2021

    A nota rosa de uma casa entre silveiras, desta perspectiva, é para já o meu ganho do dia. Manhã muito cedo, como antigamente, salvei-me do afogamento dos sonhos. Lavei-me a frio, emborquei café a ferver, botei-me à rua sem procrastinações tolas. Não foi uma nota boa, não foi uma noite má: a noite foi. Já a matina nova me servia como camisa mandada fazer por alguém que me amasse, me soubesse de cor as medidas. Aqui estou, tenho para duas horas, no mínimo, de espera. Não gosto de esperar – mas nada alternativo hei, por ora.
    Em uma coisa acertei: é sensato o afastamento. Uma pessoa cava a sua trincheira, povoa seu mesmo reduto, nada a salva, ninguém a perde. Galeria ilusoriamente móvel, todo um elenco pretérito finge querer (& crer) participar da pessoa, da vida dela, das contas da pessoa, da missão – se alguma – dela. Nicles-batatóides: ilusão tudo.
    Já a rosa-casa fica em invisível além. Dei passos no sentido oriental da urbe, mais betão agora do que vegetação. Gente de nome escondido, vestida como eu de trapos feitos em série mecânica, maralha que não dá para individuar. Consumidores de farinha dourada em fornos eléctricos. Hirsutos, gordos, escanzeladas, pintadas: machos & fêmeas clonando-se pela têvê, iguais como ovos, espelhos meus. Sentados em uma resma de tabiques manchados de cimento, quatro operários devoram sandes, entremeando a mastigação de goladas gulosas de tinto. São já, por conseguinte, dadas as dez. Não é tarde, é ainda cedo para quase tudo. Melro sozinhíssimo patinhando por talude atapetado de agulha-pinha: vivaço, de perfeita aerodinâmica, bico-d’ouro. Caminho ainda frescamente. Emborquei café-com-leite num estanco não-longe do benemérito busto de B.B. (1877-1977). Desfaço a hora. Não sei se estarei safo pelo meio-dia, tenho o Gatito sozinho em casa, não gosto de imaginá-lo presa de alguma humana inquietação. Devo ter dormido, nocturnas, três horas, não mais. Na última do trio, sonhei com os meus Velhotes & com o meu Canino Amarelo. Não foi uma revisitação boa, nem gentil a emoção: fusão & confusão de estados de saúde, incriminação reflexa, temor & tremor quási nietzscheanos. Desenredo-me ora desses liames pegajosos. O Pai não me falou – mas escutei-o. A Mãe falou –mas não a mim, sim a alguém que não vi nem soube quem fosse, o Canino pareceu-me tristíssimo, doía-lhe a velhice, percebi eu. Já não, não já quero dar largas à lembrança infecciosa – arreigadamente falaciosa, por ser mnemónica de sonho, gaze tecida de vapor, fumo de fogueira nenhuma.
    Em sala-de-espera. Corrijo: não sala mas corredor dando a portas numeradas. Cada número, cada gabinete. Especialistas encanecidos. Pacientes mascarados banco-sim-banco-não-banco-não-banco-sim, puta de pandemia anti-social esta. Não vejo jeitos nem modos de. Esperar. Emprestar o tórax a quem sabe de humanidades c(l)ínicas. Chão de mosaico verd’escuro pintalgado de preto com explosõezinhas ambarinas. Paredes texturadas. Portas cor-de-laranja-velha. SILÊNCIO POR FAVOR ESTÁ NUM HOSPITAL: as pré-admoestações não gastam vírgulas. Uma dama de sandálias fitadas de ouro-taiwan. Calções que acabam logo que dobrado o joelho, brancos. Algodão rosa-choque, a blusa. Unhas manuais & pedestres sem verniz. Deve ser da minha idade – mas, ela, de mor estragação. Outra dama: blusa leopardo-grisalho, cabeleira oxigenada, pele de lixiviosa amarelidão, sapatilhas vermelho-circo, calças de ganga-elástica. Não larga o telemóvel. Cavalheiro: de peruca mais falsa do que Judas, sobrancelhas devastadas, camisa azul-cobrador-do-eléctrico, sapatos de napa-taiwan. Lê o Record, claro. Ar de taxista espoliado pela Uber. Eu também, digo, em espera. Eis-me: camiseta encarnada com bicharoco verde (lacoste-dos-ciganos); calças coçadas como eczema azul; butes pretos em segunda-mão, digo, pé. Espero. Mais de meia-hora passada sobre a convocatória oficial. O Gatito em casa, oxalá dormindo. Sentimento pessoano: de “uma saciedade antecipada na asa de todas as chávenas”. Mas isto sem particular amargura ou merencória lassidão. Estou vivo. Respiro, digiro. Detesto menos vezes mas de melhor pontaria. Amo com cuidado & acuidade. Isto tudo vai tudo dar ao mesmo. Recipientes verdes de desinfectante para as patas. Uma velha de muletas, trôpega como as galinhas sem galo: sentada na diagonal, pele de pergaminho, grosso cordão com pendente da-de-fátima. Expressão vítrea, mãos de esmalte, prontinha para a última-corrida-última-viagem. Suponho-a octo-upa-genária-upa-upa. Deixaram-na ali, duvido que a nora volte, há por aqui cama-mesa-mortalha-lavada, duvido que o filho não tenho dito à mulher livra-te-mas-é-da-velha-traz-mas-é-o-cordão.
    Caraças: já bocejo. O vapor da expiração enevoeira-me as cangalhas. Tal é a belida, que dou por mim em casa, atendido & aviado da consulta. Olho langorosamente o meu leito mesmo. Estico-me à escala, já se me adoçam as viseiras, adeus-ó-rosa.


 

18/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 721

© Ralph Eugene Meatyard



721

Terça-feira,
17 de Agosto de 2021

    Sei de corpo sem mente – dita alma – mas não de mente/alma/consciência sem corpo. (Este último caso, só de & por fantasia.) A autoconsciência é de facto algo maravilhoso: mas não acontece sem o cérebro dispor de oxigénio. A espantosa electricidade neural opera maravilhas, sim: mas em vida. Quanto às epifanias em estado comatoso &/ou de quase-morte, pois muito bem – são alucinações terraplenadoras da percepção espácio-temporal normal, mas só isso: alucinações, espasmos imagéticos de um cérebro a trabalhar às escuras, axónios & sinapses em palpos-de-aranha para render cinema.
    Penso isto enquanto me não é concedida a mercê do sono. Porque vivo sem religião, não espero anjos nem guardas nem redenções nem milagres. Dormi à tarde, é o que foi, peno agora o não-sono. Não é grave. Papoilas visionárias? Quantas quiser – em verso. Não espero (por) uma próxima-vida que não há. A terra & o fogo me beberão ao ar a água que sou, somos todos. Somos toucinho que sonha. Ou: que sou-nha.



17/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 716 a 720

© DA.



716

Segunda-feira,
16 de Agosto de 2021

A perfeita inutilidade da minha vida
ou
Da Vossa a útil imperfeição.

717

Deu-lhe onde passar a noite a coberto
Nem sempre é sorte que se tenha numa aflição
A vida não era para acabar ali sem mais
O dia sim, acabara sem história alternativa
Onde passar a noite – entre mantas, à face de lume.

De manhã, água, comida, hora de ida
Nova-corrida-nova-viagem dos anos-por-enquanto
Os lobos mudaram de forma mas os trilhos resistem
A incógnita auto-responde-se em andamento
No extremo é-se capaz de pensar com as mãos.

718

A idade alheia não aumenta nem diminúi a minha.
Não há nesta dimensão relativ’idade.

719

    Os trogloditas-talibãs em maré de triunfo, lá no escuro Afeganistão de que só merda tem visto a luz dos dias. O género infra-humano triunfa à custa dos interesses capital-capitais. Nenhuma salvação para isto. Satisfaz-me a certeza de cá não ficar para assistir à degradação final. Daqui a uns tempitos, destrava-se lá outra guerreola, mata-se o mexilhão, a rocha fica. Depois há ainda quem se admire com a reencarnação dos fascismos. Passa-se do oito ao oitocentos sem qualquer resquício de moderação. É tudo amanhãs-que-cantam: em hip-hop, parece. Parece & é.

720

    Foi muito parecido com a felicidade: saindo pelo declínio da tarde, dei com a rua plena de luz. Mais: o calor não aleijava, mercê concedida ao mundo pela frescura da brisa. Fiz aquilo que me trouxe de casa, que era levantar uma encomenda de livros (cinco velharias a bom preço). Depois, escolhi assento à sombra, entre prédios sem bulício, já o comércio-pequeno cerrava portais. Tive pena de não ficar mais um pouco – mas havia que voltar para casa, escrever isto, ficar pasmado à janela olhando o nada de que vim para que vou.


16/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 715


715

Domingo,
15 de Agosto de 2021

    A má-nova do Domingo é a morte de um baixinho muito grande: a de Gerd Müller, o artilheiro (Der Bomber, como era bélica & carinhosamente chamado) do Bayern München & da Selecção da República Federal Alemã das décadas de 60 & 70/XX. Grande, grande rato-de-área, foi goleador exímio. Pela (então) RFA, no tempo do Muro de Berlim, foi campeão da Europa em 1972 & do Mundo em 1974 (na célebre final de 7.7.1974, Alemanha 2 – Holanda 1, marcando ele o golo-da-vitória). Muito triste. Já estava o craque holandês Cruijff – agora, ele.

15/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 712 a 714

© Richard Doyle (desenho) / Swain (gravador) / Cooke / Simon Cooke (scan)


712

Sábado,
14 de Agosto de 2021

    Pelos anos que medeiam o século XIX, aí por quando nasceu Eça, os boémios londrinos de carteira recheada iam cear, depois do teatro, ao célebre Cider Cellar, banqueteando-se com vigor & enfrascando-se à rija, cerca de cento e cinquenta, ou mais, numa larga taberna de feitio-concerto. Aí se via & escutava todo um inumerável repertório teatro-cançoneteiro, como Jack Hall (“damn his eyes”). Devem ter sido bons tempos para certa aristocracia moinante & para círculos mundanos não afligidos pela pobreza pecuniária. Um que lá foi (mas só por meia hora, não mais, por ser avesso a profanas dissipações, de conservador católico que era) chamou-se Richard Doyle, artista do Punch & tio do célebre criador de Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle. Richard foi fugaz freguês do Cider, certa ocasião, na companhia de Thackeray & de Leech.
    Apre(e)ndo estes informes na tarde algo monástica do corrente Sábado. O Gatito dorme, principezinho do tugúrio. Para mim, canja de galinha gorda & pêras cozidas em calda de canel’açúcar. Há vidas maismalmente vividas.

713

Como uma praga de marés más que o mundo há muito merecesse
Inundações-incêndios-vulcões-dispêndios-de-vida ubíquos
O planeta rebenta por costuras que já nem tinha, coitadito
Arde a fornalha, morrem calcinadas em pleno voo as aves
Não me lembro de qual foi a derradeira vez que me ri
O Benfica venceu o Arouca por 2-0, menos mal o dia
Uma pessoa desperta dentro de um si a que é estrangeira
Mirei hoje doze-retratos-doze de pessoas centenárias
Também elas aturdidas ante a dissipação do mandato de vida
Tudo lhes/me parece um comando de busca-&-destrói
Como uma praga
Etc.

Mas – esperai. Esperai, que não quero dar já por fechado o
poema anterior. De facto, o mundo parece acelerar para o
abismo de si mesmo em passo corredor, alucinado, como se
intoxicado de fadiga, inebriado de desistência/d-existência.
Será que tudo não passa de um apocalipse de plástico
fabricado pelas televisões & pela internet, esses papagaios
dos impérios em colapso, eles sim em colapso, não o planeta?
Penso que os índices são medonhos, neve no Brasilsonaro, Sibéria em chamas,
Uma pessoa acorda sem sentir-se desperta
Sente-se violada por algum fantasma que nem em sonhos.

(714)

engraçado ter & ser um corpo adentrado d’anos
A Língua dele segue nova & viçosa, não ele
Vai apetecendo usar chapéu, colete, botas-de-elástico
Dar de beber a uma dor afinal finalmente esquecida.)

14/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 709 A 711


709

Sexta-feira,
13 de Agosto de 2021

Galeria de vozes em acção a propósito de coisas de há quarenta anos.
Esquisito, relacionar os rostos envelhecidos com o entusiasmo evocado.
Quase tudo de imitação-importação, pueril, anódin’inócuo.
Rapaziadas, enfim, à moda de imitar a moda, lã que bale mais do que vale.

710

Pedro Nunes, Alcácer do Sal, 1502.
Cosmógrafo, filósofo-moral, matemático.
Tratou a Esfera.
Pai do Nónio.
Mediu a Sombra.
Tornou Náutico o Anel.
Mediu a Latitude a qualquer Hora do Dia.
O Tempo trata-o bem, demora-o, guarda-o.

711

    Bem pesadas/pensadas as coisas, as quatro linhas do/da 709 ressumam alguma amargura – mais amargura, até, do que ironia. Provieram-me elas de estar vendo um programa-TV (da rê-tê-pê) dedicado a certos momentos do punk-rock à maneira portuga. Nem me deu – nem dá – para cáustico-sardónico. Bach é o caminho.


13/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 706 a 708

© DA.


706

Quinta-feira,
12 de Agosto de 2021

    O século XX foi o mais desgraçado dos séculos, calhou-me ele por nascimento mas é no decorrente que algures morro. Caso não sejais fantasmas já ou não conteis tão-só vinte anos de nascidos, o mesmo se aplica a V. Assim é.
    Quanto ao exposto no parágrafo primevo de hoje, nada a fazer – e tudo por refazer. Do século anterior, guardo a melhor parte de entre 1964 & 1986. Não é mau: se eu chegar aos 88, é a quarta-parte da minha vida. Mas duvido que não seja, afinal, mais do que tanto – ou tão pouco. Em valor percentual, digo.

707

Ao fresco calado da noite um homem pelas ruas medievas
Indeterminado ano é o presente desta sozinha acção
Rés a igrejas fechadas com deus deixado cá fora como os cães sem dono
Lá vai ele a seu destino único, matéria prescritível como o papel

O frio dessas naves para sempre pousadas, vazias, eclesiais
Cidade de um homem só – mas não assim todavia todas, ó manos?
Passou o dia, a década exauriu-se como as mães fatigadas
É precária a jóia engastada na pedra, vulgo coração

Digamos que esta tarde dormiu para eximir-se ao calor
Despertou no deserto com telhados por todos os lados
A fontan’antiga murmurando seu débil cristal, bebedouro d’aves
Nem os cães acreditam em deus, vivem outra demanda, sábios

Lábios & beiços, mães & cães, pasto vocabular deste homem
A ninguém que o espere levará de que desespere
A solidão & o desamparo são diferentes coisas às vezes irmãs
No promontório é bom estar ao frio bebendo o ar preto

A alta silveira estelar fulge a gelo onde até os anos são luz
O sideral caracol purga hidrogénio à bruta, aquilo tudo incendiado
Como as matas no Verão Perpétuo do Século XXI, nosso último
Preferiríeis talvez que este homem nem a seu papel mesmo chegasse

É deixá-lo ir, estão devolutas as barracas da feira-popular
Anda uma criança a fazer-se homem para isto
O deserto ainda não é o mais, pior é a memória do desertor
Por mais que isto se diga devagarinho nem a soletrado cântico chega.

708

    “(…) o corpo,
    essa coisa que afinal nunca nos deixa
    e nos rouba de noite à nossa sombra.”
    Isto é Armando Silva Carvalho,
    Sentimento dum Acidental,
    página 39.
    Leio isto na minha noite, amanhã de manhã sirvo de seara a determinada colheita, digo, de sangue & mijo em jejum, o Estado-Pátrio interessa-se pelos meus valores: os éticos como os respeitantes (& respeitáveis) à glicose, ao azoto ureico, à creatinina, aos uratos (meu velho ácido úrico), sódio, potássio, cloro, cálcio, osmolalidade, proteínas totais, albumina, ALT (GTT), fosfatase alcalina, gama GT, bilirrubina total, creatina cinase, proteína C reactiva, colesterol total, triglicerídeos, hemograma com leucograma, tempo de protrombina, tempo de tromboplastina parcial + Activado/APTT,
    a verdade é já não me largarem,
    entrei no sistema & do sistema já não saio,
    como não saio de
    o corpo
    essa coisa que afinal


12/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 703 a 705

© Helen Levitt



703

Quarta-feira,
11 de Agosto de 2021

    Enregeladas, roxas, transidas mãozitas dos escolares na Primária. Como se fosse hoje. Naquele tempo em que as estações, as do ano, eram fiéis apeadeiros da Roda-Cronos. Pareço estar vendo-as, as mãozitas dos meninos em curso. Bem sei: é uma nostalgia fácil. Também reajo escoucinhando – E por que deveria ela ser difícil?
    Tudo se faz década, se desfaz século, pó de milénio, lunar desperdício, ofício solar. Demasiado pequenos para tão ingente brutidade, nós demasiado formigas para tão elefantina coisa cósmica. Em uma divisão individualizada, alguns apetrechos fazem por juncar o entretenimento. Aqui trabalha-se, ó pessoas.
    E do Primário-Tempo? Prólogo que se volve posfácio no natural usufruto da duração. Havia então Invernos a sério. A sala de aula tinha todavia fogão, juntava-se-lhe paus & ripas, o lume crepitava agasalho, já as pequenas mãos respiravam, o lápis recendia a bonomia aritmética. Pode isto gastar-se, pode?
    Pode.

704

    Olho adentro os desvãos & os desníveis da lembrança, tenho a quem agradecer fortunas sapientes – do aprender a ler ao ser delicado & dedicado. É gente, é de gente que escrevo. (Eu ia escrever que falo – mas é calado que estou, mais ninguém por aqui pulula silabário. Esta é uma verdade.)
    Devo farta maquia da minha bo’a’ventura a volumes que as jornadas filtravam mercê de invernos depressa primaveris, a luz solar coada por cortinados amarelos & humildes, lá fora o pessegueiro, o rancho de cães com suas pulgas portuguesas.
    Então: moldura prata, campo lazúli, par de cabeças de cão a ouro, diagonal escarlate & prata, pepitas de amarelo-torrado sobre crepúsculo-feno. Refiro-me às armas heráldico-familiares – mas são livrescas armações, cuidado, livrescas tão-só: nenhuma família nem clã algum me apontam seu ministro por embaixada. Ainda bem: antes só do que má viola de fado.
    Adiante porém: Em os tais desníveis & os tais desvãos d’alembradura, não poucos são os seres meus cobradores dessa pecúnia chamada gratidão. Reverso dessa grei? Também hei. Nos vários estábulos onde hei tido gasalho, agasalho & vizinhança, conheci material humano de largo espectro de acção malevolente. Anuindo à simplicidade – já conheci muita merda bípede. Nos ofícios que, contrariado, pratiquei, assisti a casos de dedicação como a exemplos de incompetência, de generosidade como de fideputice. Bem sei: assim é em todo o lado, todo o ramo, todo o bocado, todo o monturo. Falo todavia por mim só – por o que vi, ouvi, li, conferi. No ensino, no jornalismo, na construção-civil, na edição-livresca – arredei estrume com ancinho de pau como tacteei a presença de sábia gente natural & diligente.
    Hoje em dia, trabalho sem remuneração & sem remorso. Não vou auferir pensão-d’aposentação: so what?, o que for será até deixar de ser, como tudo liminarmente deixa. Fortuna de imagens me não desampara. E a certo patamar, ou plataforma, me foi dado já chegar – consistindo em saber (saber-de-fonte-limpa) que é meu o que me respeita, não pertencendo eu a quem nem ao respeito se dá. Isto não é complicado, sendo mesmo assim.
    Hoje, por exemplo. Até alta madrugada, bati oftálmicas: leituras de Alain-Fournier & de Cruz Malpique. Escrevi pouco, bocejei alguma coisa, rendi-me pouco antes das cinco. Acordei de boca deslavada e algo pastosa: foi de ter mastigado em sonhos. Era por o banquete do Ateneu Literário. Presidia ao ágape o senhor Comendador João Tieres Corvelha da Paz. Algumas presenças: o tabelião-sonetista Donato Maldonado, o dentista-epigramático Fortunato Fanado, o coveiro-alexandrino Gascão Tartarino & o enfermeiro-épico Ezequiel Celestino. Acepipámo-nos de torresmo-de-bacalhau a esmo de malvasia. Eu não discursei. Preferi haurir a sabença retórica & quilogramática de Tiago Bravo das Mercês Dourado, prestimoso & prestigiado farmacêutico-tenor da nossa praceta lírica. Sem aparente transição, vi-me depois de novo infante lá no monte para que dava o meu quarto de solteiro. Desse segmento onírico, todavia, V. darei recado outro dia.

705

Outras vezes de facto só em verso
logro dizer de mim qualquer coisita
que metade (ou nem sequer o terço)
de coisa bem pensada dê a dita.
Marçal, amigo velho que pratica
da pesca-fluvial a paciência,
é quem me lê a rima nunca rica
que esforço mas sem grande presciência.


 

11/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 702

702

Terça-feira,
10 de Agosto de 2021

    Ático Jasmim aguardava-me no pórtico. Cheguei, fomos ao bufete, tomámos café. Passei-lhe a guia, ele conferiu as cifras, sempre escrupuloso. O assunto não nos tomou vinte minutos. Antes das dez já estava eu cá fora, livre para o santo resto do santo dia. Fui escrevendo mentalmente enquanto descia a lameira que intermedeia hospital e centro comercial. Era como atirar barro transparente a parede invisível. E foi em aquele meu silêncio cujo cognome é desprezo. Mas estou a misturar as coisas. É como as penso, como as vou sentindo, agora que de facto as escrevo.
    Tive por ali mulher há mais de vinte anos, tudo passa. Não fui comido por tolo, não então, vá lá venha cá. É só um resíduo tristonho, agora, celofane usado mas não atirado fora, ainda não achei contentor para ele. Continuei. Ainda andei um bocado, porém a matina pôs-se a aquecer mais do que deveria, estes são os tempos da fornalha global, merda para eles e merda para nós.
    Apanhei o autocarro na ladeira do antigo santo. O casario envelheceu como gente. Gostei de desandar dali. Fui comer a bifana no pão ao MijaCão. Acabou por ser uma de iscas enceboladas, entrou-me bem no sistema, fui liberando arrotinhos contentinhos & surdos a caminho do quiosque das lotarias. Comprei uma mais o jornal, subi a de Coruche, transversei o Largo de D. Carlos (I & Último), parei na Rasteiro Franco, saudei a Fernanda Chana Peres Marques, esperei o meio-dia entre os plátanos poeirentos da minha vida.
    Ao meio-dia & dez, Ático atirou-me por telefone a confirmação, o deferimento, o OK para a próxima encomenda: dia duas vezes ganho, portanto. Decidi almoçar mais tarde, volta das duas, no da Manga. Nada disto importa – mas pode ser contado, mal também não faz nem traz ao mundo. Almocei das duas & ¼ às três & dez. Fui conversando com a tripulação da casa, que veio almoçar nas mesas em torno da minha. São gente de trabalho, formiguinhas videirinhas, como se diz que deve ser, não sei nem me arrisco a moralizar: nem sobre tal, nem sobre o que for, farto sempre andei eu de passarocos-passaralhos-de-arribação.
    Cá fora, na de Sidónio Cortesão, o calor tinha-se volvido besta ubíqua & omnívora. Por me ter restaurado tardito, interditei-me de imediato o ir de imediato para a cerveja gelada do estaminé do Rico Dragão. Não. Acabei, antes, de ler o jornal à sombra dos antigos Correios, daquele lado que dá para os Mortos da Pequena Guerra. A exsudação começou a incomodar-me a sério. Entrei na retrosaria de Milonga-a-Bonita, comprei uma camisa branca, embrulhei a enxovalhada num saco de papel, esqueci-me de saco & camisa velha no contentor da Sagres. Davam as cinco quase quando apanhei o de Celas. Apeei o cadáver-adiado (viva, D. Fernando P.ª!) ao alto da Sereia, ali sim, as sombras eram vivas como marés benignas, dessas ao luar romântico dos naufrágios em verso-heróico (viva, D. Sá de M.ª!).
    A essas sombras, a essas trevas frescas, é que pensei em ti.
    Não demorei muito essa toleima do meu coração.
    Faz de conta que nunca te vi.
    Dou-te um tostão.


Canzoada Assaltante