01/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 423 & 424


423

Segunda-feira,
31 de Maio de 2021

    Termina o Maio, já de si dá sinais fortes a estiagem, precoce quer nascer, ressequir já pretende o ar & as ervas & as pedras & as respirações. Junho vem de véspera como os gaiteiros, assim parece, ameaçam já com temperaturas perto dos quarenta os boletins noticiosos da especialidade.
    Depois de levar a cabo certo périplo, voltei a balançar na mente aspectos relativos a alguém de quem nunca V. falei. Trata-se de António Damião Nero Sargaço. Oleiro especializado em estatuária miniatural, criou milhares (não é exagero) de bonequitos representantes de ofícios & artes populares: pedreiro, carpinteiro, músico-filarmónico, cego-de-pedir, professor, peixeiro, pescador, pintor – imaginai um ofício ou uma arte, ele representou-o/-a em barro o mais preciosamente. Correu por aí, há tempos, o dito de que Mestre Sargaço morrera. E não foi só – que pouco não era, convenhamos – morrer. Foi onde. E com quem. Boatou-se que na cama. E com a cunhada, mulher de seu irmão Evangelino Raul. Era acintosa mentira. Gracinda (a cunhada) estava, isso é certo, separada do marido havia quase dois anos – mas não era fêmea-de-cobrição como quiseram pintá-la (ou borrá-la): muito menos com família. Outro de detalhe de não-despicienda valia: António Damião continuava vivíssimo-da-silva. Só não era visto na oficina ou na rua ou no Café ou alhures por quem quer que (não) fosse. Recolhera-se voluntariamente a uma clínica de desintoxicação alcoólica. Achou ele que andava a beber de mais há tempo de mais. Está de volta, tem bom ar, não bebe cerveja sequer, voltou a criar as figurinhas maravilhosas, parece que sim, assunto encerrado.
    Desliguei o telefone depois de agradecer que me contassem de Mestre Sargaço o que V. recontei. É sempre bom saber que um artista de mérito se reencontrou consigo mesmo, que é onde os bom & mau caminhos estão traçados. E que, por causa da honra ferida pela maledicência, Gracinda & Evangelino voltaram a falar-se, que até já por aí consta que.

424

Uma zona com rio que o Inverno congela sem perguntar.
O Verão dura muito pouco, há que aprovisionar enquanto dura.
Voltou a haver novos que afinal ficam, tratam dos velhos.
Chegou a perspectivar-se a extinção do humano por aqui.
O governo cantonal subsidiou-os, apelou à permanência.
Assinaram contratos, até agora as condições foram respeitadas.
Há uma hospedaria para oficiais de inspecção, algum turista.
Os madeireiros, por lei como por bom-senso, reflorestam.
É a principal, única quase, fonte de receita do povoamento.
Dezoito cabanas, uma capela multiconfessional, um bar-armazém.
Neste último, são tratados o correio, o registo-civil & a contabilidade-comercial.
Na década 80/XX, estacionou aqui o dramaturgo Conrad Mehler.
As permanências constam da sua autobiografia, Da Passagem Oblíqua.
O volume foi publicado ainda em vida, por duas semanas, de Mehler.
Já o li: é dolorosamente bem escrito, magnífico urdume de prosa-branca.
Nota: sendo deveras autobiográfico, nem por sombras é egocêntrico.
Mais do que o que se passa in-ego, importa-lhe o que o ego vê passar-se.
Gosto das páginas que dedicou ao metro da capital.
Estilo adequadamente subterrâneo, neónico, criptotumular.
Era na capital de um país estrangeiro, não na do seu.
Tocou-me a biografia que traçou dos quartos em que viveu.
Aquários de um só peixe, esses cubículos doaram-lhe algumas peças.
É breve o Verão; breve, a vida. Amanhã todavia será dia.
Digo: dia de V. dizer um pouco mais do que li de Conrad Mehler.
Do que li de Conrad Mehler aqui no meu longo ócio de hospedeiro de ninguém.


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Canzoada Assaltante