© DA., Sr.
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Sábado,
5 de Junho de 2021
Ronaldo de Deus & Ricardo Negrais viajaram muito. Na quinta-feira numerada 16 de Dezembro de 1976, estiveram no Budokan de Tokyo. Isso eu sei, como sei que R. de D. já faleceu. R.N. casou-se entretanto, todavia parece que não lá muito bem, a gaja é a-modos-que faneca arrebitad’irritante, os casamentos são quase sempre tiros-no-escuro-&-no-pé, tirante o de meus Pai & Mãe, que foram felizes para sempre, não muitos podem gabar-se do mesmo. Paul Newman & Joanne Woodward podem.
Outra estirpe de existência foi a de Joaquim Mauro da Piedade Gusmão. Operou no negócio da sucata com regular prosperidade. Não cedeu ao canto-de-sereias do narcotráfico. O irmão dele cedeu. Celestino esteve preso oito + seis anos, saiu farrapo da gaiola, nunca mais piou, tornou-se pastor de cabras lá para as serranias de entre Guarda & Covilhã.
Tenho mais recortes afins. Os sábados são bons pretextos para remexê-los.
Heliodoro Mugre Santista Navarro, caixeiro de ourivesaria, saiu-lhe a lotaria natalícia nos alvores de 70/XX, comprou prédio de dois andares com rés-de-chão para comércio, foi viver para o segundo, arrendou o primeiro & a loja. É vivo, fez 90 em Janeiro, não cuideis ter pena dele.
Urraca Maria Proença Varada, capelista da Rua das Fanadas, que em sonhos era actriz-canora de operetas-cómicas mas no real teimava em ser capelista da Rua das Fanadas.
São amostras humanas de um catálogo ainda vigente, embora menos nítido talvez. A minha pertença radica-se em este parentesco urbano. Comungamos raízes. Mescla de operariado-campesinato-pequeno-burguesismo, a massa gentia é de estreitas & estritas rotinas pró-sobrevivência. Algumas resultam mais tempo, outras nascem já tortas – e, proverbialmente, jamais se endireitam.
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Para contar com razoável decência algo contável, sinto precisar de certa recta cuja lonjura, bordada a freixos, é das mais seguras, constantes & primevas belezas da minha vida. Em uma de suas extremas, sobe ainda a chaminé da há muito desactivada fábrica de cerâmica. À outra, dá-lhe fim a passagem-de-nível da Linha do Norte. É um segmento importante no, chamo-lhe assim, topocronograma da minha vida. Lembro-me de coisas lá acontecidas quando ainda nem nascido era – contaram-mas com tal enargia (vale a pena ir ver o que significa esta palavra, pois que não é gralha de energia), que as fiz minhas além-tempo & aquém-espaço. (Nota: quando acima escrevi decência, fi-lo não como sinónimo de pudor, dignidade ou boa-formação – mas como competência, habilidade, destreza.)
Digo o mesmo de certa casa amarela que um cedro & uma oliveira vizinhavam. São três elementos cruciais (não exagero) na minha organização indivíduo-pessoal. Também seguros, também constantes & primevos também, casa & par de árvores valem-me como fanais nas borrascas mais obscuras. Na (f)actualidade, o cedro foi cortado, a oliveira morreu & a casa está em ruínas consumptas – mas não em mim, que vivo nesta à sombra daqueles.
Uma recta, uma casa, duas árvores – que ninguém me chame pobre. Ou por compaixão me miserabilize. Ou coiso. A propriedade simbólica integra outro género de património, tributável este a expensas & dispêndios que podem valer como investimentos interessantes. Algum verso e/ou algum parágrafo podem ocasionalmente atestá-lo. Pode acontecer, sim.
Nada disto é confissão ou lamentação. Cito o grande Almeida Garrett, aqui muito a conveniente propósito:
“Aceito, pois, com resignação todas as condições da posição isolada que escolhi: renuncio até ao direito de me queixar, que minha só é a culpa do que eu só, e por minhas mãos, e bem sabendo o que fazia, me preparei.”
Estas palavras tão lúcidas acertam em cheio tanto em meu mote (de vida) como em as voltas que lhe dou (à vida mesma). Vivência interior enraizada em imagens (mormente verbais) que faço por partilhar em Língua Portuguesa. Tenho(-me) dado muitos anos a isto, não seria agora que me deixaria de tais merdas – é a palavra justa, não V. ofendais com esta aparente falta à decência da primeira linha, recta linha.
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