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Sexta-feira,
18 de Junho de 2021
Receber a primeira luz (não são ainda as seis) do dia com Simone Kermes interpretando Polifemo: Alto Giove, do gentil Nicola Antonio Porpora (1686-1768), é bela prática iniciática. E mais ainda tal se, lá fora, despontam já, ao chamado do meu pão, pardais, pombas, o corvo, a poupa, o melro, o pisco, a arvéola. O milhafre não desce, mas já tive direito a uma gaivota (não sei se d’asa-escura, se argêntea).
O dia, como prometido, nasceu glauco mas não frígido. Vou lavrando papelada sem pressa. A clausura, voluntária, não é de claustrofobia. É mero recato, em ordem as provisões, as fontes escritas, o maná melómano, os arquivos fílmicos – e a roupa lavada no roupeiro que lhe compete.
Poucos minutos depois das nove, outra boa prática me acode: dezoito Lieder do magnífico Franz Peter Schubert (1797-1828). Já tive manhãs bem mais surdas. Redime-as, esta.
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O quarto terceto do 482 remanesce válido.
Urgiu-me anotá-lo depois de ler certas linhas (não minhas, note-se) relativas à noite de 26 de Maio último. Conservo esse documento como ponto-de-referência. É um quarteto de páginas dotado de certa sinceridade técnico-objectiva: o meu corpo naquele anoitecimento súbito. E súbdito.
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Os campos-(ditos)santos estão cheios de ex-gente finalmente equalizada – mas só ao cabo de díspares modos de ganhar & de perder a vida. São agora gregário estrume – mas foram cápsulas individuais. Muitas navegaram esse mar chamado longevidade. Outras foram decepadas cedo. Cesário Verde, Franz Schubert & o meu Irmão Jorge Manuel não passaram dos 31 anos. Recuso que seja a morbidez a fazer-me redactor destas contas. Não me anima qualquer tanatofilia. Uso o meu tempo para pensar o Tempo, isso sim. Ontem, deitando-me cedo, reacendi o candeeiro & reoculei-me para lapijar este rol:
pessoa
animal
côr
alimento
data (completa)
ofício
livro/A.
rua/Coimbra
História
música
filme/peça
geografia
panorama
palavra-do-dia
Aconteceu: os itens são catorze, como é de lei na fábrica do soneto. Também não é preciso ir a Salem tirar diploma em bruxaria para ver logo às primeiras que são artigos recorrentes na/da/quilo que escrevivo. O rol pouco liga à minha contemporaneidade mesma – é verdade que desgosto da época que me coube (& cabe). Interessa-me mais a realidade alternativa da memória, por mais fás ou menos nefas seja esta ficcion’actualizada. Também à suposta cronolinearidade não sou fiel. Interessam-me o sortilégio mental, a prodigiosa entropia das imagens, a autoridade lacónica do verso que, rimando-a, goza com a (p)rosa. Afeição & repugnância. Olvido & antecipação. Experimente-se:
Miguel Godinho conduzindo o Dois-Cavalos.
A seu lado, o cão de côr dourada.
Bolachas ambos vão partilhando.
É o dia 2 de Junho de 1986, segunda-feira.
Godinho tem por ganha-pão a reparação de electrodomésticos.
Passados 35 anos & dezasseis dias, aparece in Parnada Idemuno, de Daniel Abrunheiro.
O capítulo é escrito na Rua do Padrão.
É o ano de Chernobyl, também: pútrida perpetuidade dele.
Canta o glorioso Max Raabe com sua gloriosa Orquestra de alta ribalta.
Höstsonaten, do glorioso Ingmar Bergman, enriquece o serão já prolongado.
Dão imagens aéreas dos brejos de Proença-a-Velha, onde o menino foi reencontrado.
Miguel Godinho estaciona, vai de cão à beira-rio, do fresco recipiendários ambos.
Claramente, o texto-experiência imediatamente anterior é, ou resultou em, coisa artificiosa. Serve porém para pelo menos uma coisa, sendo esta: mostrar o meu processo. Prosa ou verso (para o caso, não há dicotomia divisora), é este o meu processo. Interessa-me fixá-lo. Para nada & porque sim. E ei-lo, mostrado & (a)fixado como antigamente os cartazes de bailes há muito bailados.
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