07/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 441 a 446

Rilke by Lou Albert-Lasard


441

Domingo,
6 de Junho de 2021

Esta é a Cidade, que não sinto seja escura.
Não depende a sua luz do observador?
Um pouco apenas – quanto ser escrita possa.
De resto, carbura a sós o mais cosmicamente.
Sentir, pouco é; usar é mais importante.

442

Permanece enquanto alguém a olha, a permanência.
As coisas não pensam, esse castigo é nosso.
Castigo & recompensa, dual condição.
Mínima porção do real ordenamos.
No fundo, caracóis somos: um rasto de baba,
uma espiral às costas: casa & nebulosa.

443

    Voltei hoje a aflorar circunstâncias/vicissitudes/idiossincrasias de um homem cujo somatório anuário se ficou pelos cinquenta & um. Deixou obra poderosa. A sua genuinidade é intocável – a meu ver como aos olhos de muitos, que o sei bem.
    Sonhei há dias com algumas coisas a ele relativas. Viagens que fez em aparato da mais estreme solidão. O que lhe aconteceu durante a Grande Guerra. As mulheres invisíveis a que pouco podia dar de si & de quem pouco – ou afinal nada – podia receber. E aquilo de nunca descer a assemelhar-se à gente que detestou – e alguma ela foi.
    Sonhei isso – voltei hoje a procurá-lo, encontrei algumas coisas, é nelas que penso enquanto alinhavo isto.
    Este homem pertence, cronologicamente falando, a um segmento histórico europeu que me interessa muito há muito: grosso modo, o que vai de 1845 (nascimento de Eça) a 1945 (fim da II Guerra Mundial). Muitas outras pessoas & obras me atraem fora desta demarcação, claro. Não quero ser taxativo – nem por sombras. Mas 1845-1945 foram belos & tremendos cem (+ um) anos. Ora, as datas terrenas deste homem são 1875-1926 – e o nome terreno dele, Rainer Maria Rilke.

444

Pondero sem pressa no domingo já anoitecido.
Em meu casulo, mal o senti lá fora.
Resumo a estas linhas o já volvido.
Não sei do relógio, não sei da hora.

445

De casa sai cedo sempre, cruza a praceta
Leva pressa calculada, todo o trajecto a pé
Avenida descida, monumento ao Camões
Praça pressurosa, bancas todas prontas
Ei-la dispondo mercancias, dispondo ordem
Às oito vem café, daquele de cafeteira
Uma fatia de broa, um lingote de toucinho
Maioria mulheril, vendendo & comprando
Há um açougueiro que se engraça dela
Mas ela é cativa de um que é polícia
Sempre é outro mister, salário estatal
Será o que for, por ora a deixemos.

Também da praceta, muito cedo também
Vem a sol-ou-chuva um que é chapeleiro
Jejua até tarde, só toma água morna
Já não fuma tanto, já sente o pigarro
Sempre é muito ano de muito cigarro
Passa a Praça sem pressa, só entra às nove
Conversa um pouco com colegas caixeiros
Este domingo na Arregaça União com o Caldas
Andam obras na rua, estripam-na canos
À porta do ourives critica-se a Câmara
À uma da tarde, saída p’r’almoço
Ele come uma sandes, sopa só à noite.

Subindo ligeiro no sentid’oeste, tereis o Rio
Tereis da Outra-Banda Santas Clara & Isabel
Outrora montaram aqui aparato de praia
Praia mas fluvial, que a oceânica é outro mundo
Desce do táxi à porta do Astória a bela Ingrid
Passa despercebida, vem por uma noite só
À mesma hora no Palace da Curia retine o telefone
É Ingmar quem atende, chamada de engano
Nós por aqui não discutimos nem-deus-nem-pátria-nem-família
De Braga desceu a revolução cinzenta
Um dia subirá de Santarém a verde-rubra
“Deixa-lá-casar-quem-casa-que-ninguém-nos-tira-a-vez”.

446

    Humildade lúcida, considerando a grandeza cósmica à pequenez do corpo cotejada. Agora já aqui se sabe alguma coisa, não é possível perder tudo. Ergue-se o muro, em papel escondido as cruzes com as passagens secretas. Alguma palavra trocada mais do que de mera circunstância? Oxalá. Pouco tempo & muito tempo fundem-se. O ratito rói o calendário com a litografia do Sagrado Coração de Jesus – nada parece tão profano quão sobreviver-porque-sim. Olha-se muito, vê-se pouco, aprende-se menos ainda. Mas alguma coisa se deixa assimilar, algo quer ser o tesouro de alguém. Mesmo as ninharias anelam ser prorrogadas. Neste sentido, até a grandeza cósmica se volve ninharia.

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Canzoada Assaltante