15/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 477

 

© DA., Sr.


477

Segunda-feira,
14 de Junho de 2021

Manhã

A prima recorda carinhosamente o primo na infância
Esse mesmo primo depois volvido famoso mas contrariado
O rapaz que caminhava milhas com o pai pela mão
É bonito o quadro em invisível moção que da voz dela surge.

Concha, a prima; Samuel, o primo; 110 anos lá vão
Tanto faz ter sido há século & tal quanto ontem
Ontem é passado para tão sempre quão um amanhã já gasto
Se descuidamos o passo, atolamo-nos não sabendo ler nem escrever.

Há pouco, os camiões em rota de abastecimento
Lá iam eles gigantemente pela pequenez quotidiana
Lá seguiam carregados de coisas dinheirosas
Muito diligentes devorando asfalto, enxugando horários.

Ri-me da cena em que um G. desmascara uma cègada
Uma suposta medium em aparição de criança morta
São páginas escritas & publicadas em Janeiro de 1880
Já pois lá vão bem mais de quinze dias.

Tudo se alinha em microcosmo suficiente
Dados, imaginados ou roubados, os elementos imperam
Concha & Samuel, o tal G.(S.), a charlatanice mediúnica
Pai & filho entendendo-se sem abrirem as bocas.

Antes ’inda do meio-dia deste mesmo dia
A favorita do rei desperta rancores mui azedos
Duzentos anos passam no fósforo do costume
Sacham para milho as mulheres de Prelada.

Águas sãs, lanifícios fortes, pedra imemorial
Urde-se o fio, leva-se ao tear, não é festiva a época
Um rapaz doente dos nervos não sai do pátio
Tem quarenta anos, é um menino anacrónico.

Santíssimas irmandades do Santíssimo
Passeiam ao sol o Corpo de Deus
Corpus Christi de Platero y Juan Ramón Jiménez
Não longe é essa raia de Espanha.

    Se Vos parece confusa esta enumeração, posso sempre passar a mais prosaica concatenação de elementos. Nada me custa, favor é nenhum, por quem sois. Ramos/fogaças, foguetes rastilhando de enxofrante fedor a caminho de Deus. Um coelho vivo arrematado por 37$50.

    Leitor, sou o único vivo restante sobre tão remo(r)tas coisas. O reinado de um George IV, que não era naturalmente natural daqui. Um João Mocho & um José Assis conversam em frente à capela. O sol tornou-se áspero, a caliça range & greta-se.

    De pedra, a escadaria goza a sombra da figueira velha. Abre uma lata de pêssegos meados em calda a Belarmina de Alenquer. O homem dela é Jerónimo, muito gosta ele de falar alto pela aparelhagem. Da Lajeosa, Casimiro Dâmaso pensa botar casa por aqui.

    Um Fernando foi para Lisboa, conta reformar-se lá, voltar de vez só por velhice consumada. Um Pascoal ganha 140 escudos por dia como pedreiro. Não sei quanto por dia auferia o tal quarto George. Talvez mais qualquer coisita do que o dito canteiro.

    Murmura no regadio a água muito pura. Vê-se no adro, brincando sem bulha, os primitos Samuel & Concha. Tasquinha erva molhada o bom burrico Platero. É soado o meio-dia.

Tarde

    Tenho, devagar mas imparavelmente, evitado contrariedades que, em mais novo, não saberia arredar sem retorno. Ontem à noite pensei nisso, hoje à tarde penso de novo nisso. E depois passa-me, saudade não deixando.
    Um panorama de terra escocesa abre-se ao apreciador.
    Longe, na loja de utilidades, o velhote Marto lida.
    Em Aguiar da Beira, vai varrendo o corredor
    de sua casa, mas sem pressa nem fervor,
    santa em andor distraída, a velhota Margarida.
    Alheado do mundo, redijo uma tarde que já se me não faz cedo. O Gatito & eu batemos a sesta, corridos estores & cortinados em penumbra. Tal par de horas foi-nos de doçura, exilados adentro nossos escaninhos íntimos. Ao despertar eu, já o meu felídeo renascera em sumo apuro de suas faculdades: espreguiçou-se em arco olímpico, escancarou a boquinha aguda, eriçou pêlo a pêlo o seu níveo manto, foi beber água como um justo. Por mim, refiz o diagrama nervoso com uma estocada de cafeína a preceito, esfreguei as fuças com a água mais fria que saquei d’el-cano, reiterando ao espelho um rosto de quem tinha vinte anos há trinta & sete idem.
    No televisor, pedaço de uma cidade por que sumariamente cirandei nos primeiros dias do Maio de 1992: Sevilha. Se calhar, nunca mais lá volto. Sem ser por tara de miron’erotómano, recordo a beleza estonteante das Sevilhanas, o brio delas, o garbo delas, a corporeidade a tira-linhas delas. Quase três décadas volvidas, é lembrança gentil ainda partilhável com Vossas Senhorias.
    Rapazes da minha terra mostram cabeças encanecidas.
    Às vezes, topo algum deles quando desço ao burgo.
    Lá andam eles lidando, tratando de suas vidas.
    Uns são já avôs de criancinhas apetecidas.
    Eu ’inda não, não o quis ’inda o Demiurgo.

Noite

Ante a noite nova, sinto antigualhando-se-me a atenção experta,
exorar valendo nada ao que ou a quem não for por não ser nem haver.
Há muito não me descaso & saio pela nocturna via aberta,
passos sem relógio atirando ao aonde vou & ao que vier.
Na marquise, vertical, recebo o poente já salmão, já violáceo.
Já refrescam sombras a Geria, a Cidreira, a Póvoa do Pinheiro.
Moravam por ali o Zé Lacoste, o Asdrúbal & o Acácio:
emigraram os dois primeiros, mora ora em Alcarraques o terceiro.
Sair, saio só quarta que vem, lá quando a tarde for meã.
Então até, por casa fico, leio, escrevo, mexerico, comporto as horas.
Planos, nunca tenho – tenho por infinito o eventual amanhã.
Devo ir dormitand’acordando, petiscando biscoitos a desoras.
Alheias genealogias espiolho de volumes velhos meus companheiros.
Tenho caixotes deles, pecúlio de pios anos irretornáveis.
Eu, ao tempo, oficiava, até ganhava alguns dinheiros.
Hoje folheio mortandades, nomes & datas enumeráveis.
Pensa adorn’alindar-se a tromba quem se arremesquinha:
tenho por ’í-além visto muita carranca esborratada.
Não sei que seja metrossexual – o mais certo é ser nada,
nada que ressuscite da morte a lázara moscazinha.
Já o trapo de flanela pus de lado,
refinado lençol me amortalha.
Se de algum sonho avindor despertado,
sorrio despertando quando calha.
Normalmente não, todavia, no entanto, mas & porém.
O mor é acordar modos-que alquebrado,
lento, macilento, remelento, pitosga, atapetado
do comichoso ácaro que comigo acorda também.
Estar-nos-livros é tido por saber-de-fonte-segura:
com os meus não conteis, se for esse o aspecto.
Eu rio-me por fora – mas por dentro, circunspecto,
não auguro ao que escrevo grande fortuna futura.



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Canzoada Assaltante