10/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 457 a 462

© DA.


457

Quarta-feira,
9 de Junho de 2021

    Lavrador de pedras, um pouco dele pode saber-se, não muito, é pouco o que pode saber-se de si mesmo – quanto menos dos outros. Ainda assim, dei parte das minhas horas nocturnas ao velho Robert Paterson / Old Mortality do grande Sir Walter Scott (1771-1832). Foram horas boas, as desta madrugada – alumiadas por este incipit:

    “The remarkable person, called by the title of Old Mortality, was well known in Scotland about the end of the last century. His real name was Robert Paterson.”

458

    Fiz a pé mui razoáveis jornadas já. Gostaria de refazer alguns trajectos. Quanto a outros, não, nada. Estradas, matas, serras, cidades, praias: tenho um bom catálogo. Lenda, balada, trova, madrigal, solau, folclores, romanceiro, crestomatia – já calcorreei disso também. Cavalaria solitária, a minha – e sem cavalo, a verdade valha. Mal nenhum.

459

Pavão bicando alimento dentre gravilha no jardim do baronete.
Retrato a óleo do oficial quando moço, majestática já a pose.
A velha conservadora trata de não acumular-se verdete
nas brônzeas amostras (espadas, insígnias, adagas) dos Invictos Doze.

460

    Outra porção do dia, dou-a a músicos contando raízes de seu ofício. É tempo muito bem usado. É tempo-través-documento. De onde vieram canções. Escolhas feitas, influências assimiladas. Consumpção do íntimo estrelato, por assim dizer. Vicejar & definhar: como sempre, desde sempre, para sempre, por/com/em toda a gente. Hábito do óbito. Édito & inédito. Certa consciência relativa a pertença geracional + tracejado do individual. Tradição renovada + criação-em-fresco. Interessa-me cada trecho de solidão, uma solidão apimentada de quando em vez por algum conluio feliz com outra solidão. Sim, boa porção do dia. Tão boa, que me disponho à seguinte versalhada:

461

Lavra no mundo a luz do sol maduro.
É bom pô-la em verso descuidado.
De cedros um bosque perfilado
oferece refrigério casto & puro.

Não se me cansa a vista, deslumbrada
da simples maravilha de haver mundo.
Nascer é afinal mais do que nada.
Morrer é ciclo dado por rotundo.

No Bolão, a pele da terra viceja
cuidosa geometria que apraz.
Em galeria, arvoredo verdeja
& deseja a chuva que tu, Deus, dás.

Tanta pátina d’ouro enriquece
até o mais pobre incréu, como o sou eu.
À nativa pátria já só esquece
quem nunca a própria mãe soube ou conheceu.

E quase cego de cal o casario
resplende revérberos rutilantes.
Inté parece um Verão, daqueles dantes
que juravam nunca mais voltar o frio.

Sair de quando em vez fora-de-portas
faz bem ao citadino entediado.
Pode ele então gozar o seu bocado
passado entre pomares & frescas hortas.

Deve, lá para bandas da Figueira,
soprar mais fresco o vento ao sol marinho.
Lá mora a Leonor doce & fagueira,
a quem devo nunca mais ’star sozinho.

Parece certa bruma vir descendo
& empalidecendo o Casal Ferrão.
É a luz natural que vai morrendo,
vendo-se agora mais baço o Bolão.

Certo é serem já as 19 & 30,
dos andares vizinhos já cheira a sopa.
A Rosa do Jorge recolhe a roupa
do estendal muito enxuta & muito limpa.

462

    Sou possuidor de um caderno de capas amarelas (ou antes, amarelecidas) em cujas páginas anoto contribuições minhas para conversas que nunca terei com algumas pessoas – e nunca as terei pela mui simples razão de tais pessoas ou já terem morrido ou não haverem nascido ainda. A tal caderno vou bastas vezes & adrede recortar fragmentos soliloquazes. Com estes, componho diversos versos – ou prosículas mais ou menos lapidares. E quando me canso, vejo que são horas de cear, fecho tudo a seis chaves. (A sétima, perdi-a no dia em que te vi, Milu-Lili.)

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Canzoada Assaltante