© DA.
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Quinta-feira,
10 de Junho de 2021
Escrevi a José Vicente esta carta:
Meu excelente Zé-Vic:
nós por cá continuamos um só. Encontrei um abrigo decente. Não tenho vizinhança, só pessoas que vivem no mesmo prédio. É assim em muito lado, não me queixo nem disso nem de outra coisa (ou outro alguém) qualquer.
Tenho aproveitado o ócio forçado para aprender mais música. É arte que não consegue cansar-me. É infinitamente bom saber que há infinitamente boa música. Atravessa os séculos em perene novidade. E mais: feita de tempo audível, ela logra anular o Tempo, surda à devastação dele. Digo isto assim porque, como sabes, tenho a mania.
Ao contrário de (bons) hábitos antigos, tenho vivido mais as noites & menos as manhãs. Para mais, vem aí o Verão, que cada ano acho modo de detestar ainda mais. Antes, levantava-me às seis da manhã. Por estes tempos, tem sido essa a hora a que, exausto de letrinhas, me deito. Quero (e vou) recuperar a rotina antiga – não por ser mais produtiva (não sei se o é deveras) mas por me angustiar perder horas de luz.
Falo com quase ninguém sobre generalidades – e sobre particularidades, com ninguém. Os zé-vicentes da minha vida rarefizeram-se-me como cubos de gelo atirados ao mar. Ou ao whisky, em dia bom.
Escrevi ontem uma coisa, lendo a qual quaisquer dois-de-testa percebem que sou um doidinho pelo bom Cesário V. É verdade, adoro o pobre rapaz tão cedo extinto – mas não o imito ou plagio, não o pasticho ou emulo. Leio-o muito, é tudo. Acontece-me brincar com a música dele. (Ponho aqui itálico em música porque bem me entendes, sempre me entendeste bem,)
Quanto a leituras, relatório fácil: muitas, quase depressa & bem. Sobretudo releio. Ontem de madrugada, Walter Scott & Proust. Hoje (não te rias), Cesário V. Levo a meio a tese do Pierre Nordon sobre o Conan Doyle. Tenho o Édipo em Colono à cabeceira. E idem o Paul Valéry dos ensaios de 20 & 30 do século passado. E a Bíblia (esta, devagar; vou nos Actos dos Apóstolos). Faço por não mexer em mais para não emaranhar o fio no pavio. Não é fácil. É muita a tentação, insuficiente sempre o tempo – mesmo para um desassalariado como eu. (Isto não é queixume, Zé-Vic, juro que não.)
Em vez de queixume, gratidão: dos mantimentos que me enviaste em Março, os menos perecíveis ainda me fazem companhia: farinha, conservas, medicamentos – e os livros, claro. A senhora da Segurança Social tem sido muito prestável, mais agora até por causa da pandemia. Falta-me uma estante – mas tu livra-te de mandares alguém trazer-me uma. Por ora, não mandas nem mandes nada. Resolve isso do teu filho, prioridade-máxima, isso sim.
Penso muito. Ou antes: imagino muito (no sentido de criar imagens). Aspectos (ditos) reais mesclam-se-me com abstracções (mais ou menos) fantasistas. Não é esquizofrenia nem para lá caminha, sossega. É tão-só compensação, por assim dizer. Porque sou, enquanto sujeito, insuficiente – chamo insuficiente ao objecto. (Sei que não estou a exprimir-me bem, mas sei também o tão-bem com que sempre – mas sempre – me entendes, entendeste & entenderás.)
Vês? Na brincadeira, passa já das duas da matina. Não faz mal. Eu posso ir escrevendo, tu podes ir lendo, pausa agora, retoma quando calhar. Passo a enumerar-te, em linhas mais curtas (se quiseres, chama-lhes versos), algumas imagens oriundas das tais mesclas que supra te referi:
Lago cuja pele acolhe folhas verdes, amarelas, castanhas.
Homem de camisa azul (percebe-se ser cara).
Avioneta sulcando um céu sobre floresta infindável.
Em bairro paupérrimo, uma associação humanitária.
Pomares citrinos maravilhosos, belamente cuidados.
Encontro de fatos-gravatas para conferenciar sobre os sem-abrigo.
Um rosto feminil-nipónico de desarmadora graciosidade.
Carteiro entregando uma carta minha ao senhor José Vicente.
Mulheres-da-limpeza sentadas em muro baixo, fumando em silêncio.
Ruas desertas, pessoas para lá de janelas fechadas, sonho pungente, acerbo.
O silêncio dos mortos, percebe-se muito bem; o dos vivos, pouco & mal.
Nada disto, enfim, traz grande ou pequeno mal ao mundo. Já branqueia a oriente a alva nova. Esqueci-me de adormecer, ando de fusos trocados, talvez benigna me seja a matina. Findo aqui parágrafo, na esperança porém de mais adir, hoj’inda, a esta carta que te quer duas vezes bem, seja hoje, amanhã também.
Ou então fica para uma mais ou menos próxima.
P.I.
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Manhã toda dormida. Não sei se ponho ou não a carta para José Vicente no correio. Talvez lha remeta por aqui apenas, não penso mais nisso. Outras linhas me convocam. Afazeres mínimos. Cortaram-me o cabelo (pente-4), estou mais leve. Da outra banda do lago vem chegando a barca que arrasta a noite. E a noite é o lago & é a barca.
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Herberto Zana sabe coisas da guerra que o Diabo esqueceu.
O rosto dele parece talhado a cêra dura como o diamante.
Há anos que projecta escrever sobre o que sabe.
Nunca escreveu nada que pensasse em forma de livro.
Na guerra, anotou lances, situações & epifanias.
Trouxe o caderno, mostrou-mo, cheira a ardido.
Posso ajudá-lo, desde que lhe faça bem.
Digo: posso ajudá-lo a formalizar o depoimento.
Não devo aproveitar-me dele, parasitá-lo, verminá-lo.
O livro tem de ser todo dele: como as mãos & os olhos, só dele.
Marta Quina é pessoa com quem pode conversar-se sem porvir.
Dá o fresco no patamar que franqueia vista para o bosquete de cedros.
Se espero o autocarro e ela passa, uma saudação basta.
Se nos encontramos na fila da padaria, qualquer assunto é viável.
Como eu, tem ela muitos anos disto.
Já ambos vimos a Cidade mudar-se conforme as nossas idades.
Para mais, frequentámos o mesmo liceu & a mesma faculdade.
Ela tem um casalito de netos, são os brinquedos dela.
Não teve um casamento seguro, mas que durou até à viuvez.
Agora, os netos relançaram-na na dinâmica do mundo.
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